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Sermão de Santo António aos Peixes | Padre António Vieira

Foto © Ró Mar | Museu de Santo António | Lisboa

Sermão de Santo António aos Peixes

V

Descendo ao particular, direi agora, peixes, o que tenho contra alguns de vós. E começando aqui pela nossa costa: no mesmo dia em que cheguei a ela, ouvindo os roncadores e vendo o seu tamanho, tanto me moveram o riso como a ira. É possível que sendo vós uns peixinhos tão pequenos, haveis de ser as roncas do mar?! Se, com uma linha de coser e um alfinete torcido, vos pode pescar um aleijado, porque haveis de roncar tanto? Mas por isso mesmo roncais. Dizei-me: o espadarte porque não ronca? Porque, ordinariamente, quem tem muita espada, tem pouca língua. Isto não é regra geral; mas é regra geral que Deus não quer roncadores e que tem particular cuidado de abater e humilhar aos que muito roncam. S. Pedro, a quem muito bem conheceram vossos antepassados, tinha tão boa espada, que ele só avançou contra um exército inteiro de soldados romanos; e se Cristo lha não mandara meter na bainha, eu vos prometo que havia de cortar mais orelhas que a de Malco. Contudo, que lhe sucedeu naquela mesma noite? Tinha roncado e barbateado Pedro que, se todos fraqueassem, só ele havia de ser constante até morrer se fosse necessário; e foi tanto pelo contrário, que só ele fraqueou mais que todos, e bastou a voz de uma mulherzinha para o fazer tremer e negar. Antes disso já tinha fraqueado na mesma hora em que prometeu tanto de si. Disse-lhe Cristo no horto que vigiasse, e vindo de aí a pouco a ver se o fazia, achou-o dormindo com tal descuido, que não só o acordou do sono, senão também do que tinha blasonado: Sic non potuisti una hora vigilare mecum? Vós, Pedro, sois o valente que havíeis de morrer por mim, «e não pudestes uma hora vigiar comigo»? Pouco há, tanto roncar, e agora tanto dormir? Mas assim sucedeu. O muito roncar antes da ocasião, é sinal de dormir nela. Pois que vos parece, irmãos roncadores? Se isto sucedeu ao maior pescador, que pode acontecer ao menor peixe? Medi-vos, e logo vereis quão pouco fundamento tendes de blasonar, nem roncar.

Se as baleias roncaram, tinha mais desculpa a sua arrogância na sua grandeza. Mas ainda nas mesmas baleias não seria essa arrogância segura. O que é a baleia entre os peixes, era o gigante Golias entre os homens. Se o rio Jordão e o mar de Tiberíades têm comunicação com o Oceano, como devem ter, pois dele manam todos, bem deveis de saber que este gigante era a ronca dos Filisteus. Quarenta dias contínuos esteve armado no campo, desafiando a todos os arraiais de Israel, sem haver quem se lhe atrevesse; e no cabo, que fim teve toda aquela arrogância? Bastou um pastorzinho com um cajado e uma funda, para dar com ele em terra. Os arrogantes e soberbos tomam-se com Deus; e quem se toma com Deus, sempre fica debaixo. Assim que, amigos roncadores, o verdadeiro conselho é calar e imitar a Santo António. Duas cousas há nos homens, que os costumam fazer roncadores, porque ambas incham: o saber e o poder. Caifás roncava de saber: Vos nescitis quidquam. Pilatos roncava de poder: Nescis quia potestatem habeo? E ambos contra Cristo. Mas o fiel servo de Cristo, António, tendo tanto saber, como já vos disse, e tanto poder, como vós mesmos experimentastes, ninguém houve jamais que o ouvisse falar em saber ou poder, quanto mais blasonar disso. E porque tanto calou, por isso deu tamanho brado.

Nesta viagem, de que fiz menção, e em todas as que passei a Linha Equinocial, vi debaixo dela o que muitas vezes tinha visto e notado nos homens, e me admirou que se houvesse estendido esta ronha e pegado também aos peixes. Pegadores se chamam estes de que agora falo, e com grande propriedade, porque sendo pequenos, não só se chegam a outros maiores, mas de tal sorte se lhes pegam aos costados, que jamais os desferram. De alguns animais de menos força e indústria se conta que vão seguindo de longe aos leões na caça, para se sustentarem do que a eles sobeja. O mesmo fazem estes pegadores, tão seguros ao perto como aqueles ao longe; porque o peixe grande não pode dobrar a cabeça, nem voltar a boca sobre os que traz às costas, e assim lhes sustenta o peso e mais a fome.

Este modo de vida, mais astuto que generoso, se acaso se passou e pegou de um elemento a outro, sem dúvida que o aprenderam os peixes do alto, depois que os nossos Portugueses o navegaram; porque não parte vice-rei ou governador para as Conquistas, que não vá rodeado de pegadores, os quais se arrimam a eles, para que cá lhes matem a fome, de que lá não tinham remédio. Os menos ignorantes, desenganados da experiência, despegam-se e buscam a vida por outra via; mas os que se deixam estar pegados à mercê e fortuna dos maiores, vem-lhes a suceder no fim o que aos pegadores do mar.

Rodeia a nau o tubarão nas calmarias da Linha com os seus pegadores às costas, tão cerzidos com a pele, que mais parecem remendos ou manchas naturais, que os hóspedes ou companheiros. Lançam-lhe um anzol de cadeia com a ração de quatro soldados, arremessa-se furiosamente à presa, engole tudo de um bocado, e fica preso. Corre meia companha a alá-lo acima, bate fortemente o convés com os últimos arrancos; enfim, morre o tubarão, e morrem com ele os pegadores.

Parece-me que estou ouvindo a S. Mateus, sem ser apóstolo pescador, descrevendo isto mesmo na terra. Morto Herodes, diz o Evangelista, apareceu o Anjo a José no Egipto, e disse-lhe que já se podia tornar para a pátria, porque «eram mortos todos aqueles que queriam tirar a vida ao Menino»: Defuncti sunt enim qui quaerebant animam Pueri. Os que queriam tirar a vida a Cristo menino, eram Herodes e todos os seus, toda a sua família, todos os seus aderentes, todos os que seguiam e pendiam da sua fortuna. Pois é possível que todos estes morressem juntamente com Herodes?! Sim: porque em morrendo o tubarão, morrem também com ele os pegadores: Defuncto Herode, defuncti sunt qui quaerebant animam Pueri.

Eis aqui, peixinhos ignorantes e miseráveis, quão errado e enganoso é este modo de vida que escolhestes. Tomai o exemplo nos homens, pois eles o não tomam em vós, nem seguem, como deveram, o de Santo António.

Deus também tem os seus pegadores. Um destes era David, que dizia: Mihi autem adhaerere Deo bonum est. Peguem-se outros aos grandes da terra, que «eu só me quero pegar a Deus». Assim o fez também Santo António; e senão, olhai para o mesmo Santo, e vede como está pegado com Cristo e Cristo com ele. Verdadeiramente se pode duvidar qual dos dois é ali o pegador: e parece que é Cristo, porque o menor é sempre o que se pega ao maior, e o Senhor fez-se tão pequenino, para se pegar a António. Mas António também se fez menor, para se pegar mais a Deus. Daqui se segue, que todos os que se pegam a Deus, que é imortal, seguros estão de morrer como os outros pegadores. E tão seguros, que ainda no caso em que Deus se fez homem e morreu, só morreu para que não morressem todos os que se pegassem a ele: Si ego me quaeritis, sinite hos abire. «Se me buscais a mim, deixai ir a estes.» E posto que deste modo só se podem pegar os homens, e vós, meus peixezinhos, não, ao menos devereis imitar aos outros animais do ar e da terra, que quando se chegam aos grandes e se amparam do seu poder, não se pegam de tal sorte que morram juntamente com eles. Lá diz a Escritura daquela famosa árvore, em que era significado o grande Nabucodonosor, que todas as aves do céu descansavam sobre os seus ramos e todos os animais da terra se recolhiam à sua sombra, e uns e outros se sustentavam de seus frutos: mas também diz que, tanto que foi cortada esta árvore, as aves voaram e os outros animais fugiram. Chegai-vos embora aos grandes; mas não de tal maneira pegados, que vos mateis por eles, nem morrais com eles.

Considerai, pegadores vivos, como morreram os outros que se pegaram àquele peixe grande, e porquê. O tubarão morreu porque comeu, e eles morreram pelo que não comeram. Pode haver maior ignorância que morrer pela fome e boca alheia? Que morra o tubarão porque comeu, matou-o a sua gula; mas que morra o pegador pelo que não comeu, é a maior desgraça que se pode imaginar! Não cuidei que também nos peixes havia pecado original. Nós os homens, fomos tão desgraçados, que outrem comeu e nós o pagamos. Toda a nossa morte teve princípio na gulodice de Adão e Eva; e que hajamos de morrer pelo que outrem comeu, grande desgraça! Mas nós lavamo-nos desta desgraça com uma pouca de água, e vós não vos podeis lavar da vossa ignorância com quanta água tem o mar.

Com os voadores tenho também uma palavra, e não é pequena a queixa. Dizei-me, voadores, não vos fez Deus para peixes? Pois porque vos meteis a ser aves? O mar fê-lo Deus para vós, e o ar para elas. Contentai-vos com o mar e com nadar, e não queirais voar, pois sois peixes. Se acaso vos não conheceis, olhai para as vossas espinhas e para as vossas escamas, e conhecereis que não sois aves, senão peixes, e ainda entre os peixes não dos melhores. Dir-me-eis, voador, que vos deu Deus maiores barbatanas que aos outros de vosso tamanho. Pois porque tivestes maiores barbatanas, por isso haveis de fazer das barbatanas asas?! Mas ainda mal, porque tantas vezes vos desengana o vosso castigo. Quisestes ser melhor que os outros peixes, e por isso sois mais mofino que todos. Aos outros peixes, do alto mata-os o anzol ou a fisga, a vós sem fisga nem anzol, mata-vos a vossa presunção e o vosso capricho. Vai o navio navegando e o marinheiro dormindo, e o voador toca na vela ou na corda, e cai palpitando. Aos outros peixes mata-os a fome e engana-os a isca; ao voador mata-o a vaidade de voar, e a sua isca é o vento. Quanto melhor lhe fora mergulhar por baixo da quilha e viver, que voar por cima das entenas e cair morto!

Grande ambição é que, sendo o mar tão imenso, lhe não basta a um peixe tão pequeno todo o mar, e queira outro elemento mais largo. Mas vedes, peixes, o castigo da ambição. O voador fê-lo Deus peixe, e ele quis ser ave, e permite o mesmo Deus que tenha os perigos de ave e mais os de peixe. Todas as velas para ele são redes, como peixe, e todas as cordas, laços, como ave. Vê, voador, como correu pela posta o teu castigo. Pouco há nadavas vivo no mar com as barbatanas, e agora jazes em um convés amortalhado nas asas. Não contente com ser peixe, quiseste ser ave, e já não és ave nem peixe; nem voar poderás já, nem nadar. A natureza deu-te a água, tu não quiseste senão o ar, e eu já te vejo posto ao fogo. Peixes, contente-se cada um com o seu elemento. Se o voador não quisera passar do segundo ao terceiro, não viera a parar no quarto. Bem seguro estava ele do fogo, quando nadava na água, mas porque quis ser borboleta das ondas, vieram-se-lhe a queimar as asas.

À vista deste exemplo, peixes, tomai todos na memória esta sentença: Quem quer mais do que lhe convém, perde o que quer e o que tem. Quem pode nadar e quer voar, tempo virá em que não voe nem nade. Ouvi o caso de um voador da terra: Simão Mago, a quem a arte mágica, na qual era famosíssimo, deu o sobrenome, fingindo-se que ele era o verdadeiro filho de Deus, sinalou o dia em que aos olhos de toda Roma havia de subir ao Céu, e com efeito começou a voar mui alto; porém a oração de S. Pedro, que se achava presente, voou mais depressa que ele, e caindo lá de cima o mago, não quis Deus que morresse logo, senão que aos olhos também de todos quebrasse, como quebrou, os pés.

Não quero que repareis no castigo, se não no género dele Que caia Simão, está muito bem caído; que morra, também estaria muito bem morto, que o seu atrevimento e a sua arte diabólica o merecia. Mas que de uma queda tão alta não rebente, nem quebre a cabeça ou os braços, se não os pés?! Sim, diz S. Máximo, porque quem tem pés para andar e quer asas para voar, justo é que perca as asas e mais os pés. Elegantemente o Santo Padre: Ut qui paulo ante volare tentaverat, subito ambulare non posset; et qui pennas assumpserat, plantas amitteret. Se Simão tem pés e quer asas, pode andar e quer voar; pois quebrem-se-lhe as asas para que não voe, e também os pés, para que não ande. Eis aqui, voadores do mar, o que sucede aos da terra, para que cada um se contente com o seu elemento. Se o mar tomara exemplo nos rios, depois que Ícaro se afogou no Danúbio não haveria tantos Ícaros no Oceano.

Oh alma de António, que só vós tivestes asas e voastes sem perigo, porque soubestes voar para baixo e não para cima! Já S. João viu no Apocalipse aquela mulher cujo ornato gastou todas as luzes ao Firmamento, e diz que «lhe foram dadas duas grandes asas de águia»: Datae sunt mulieri alae duae aquilae magnae. E para quê? Ut volaret in desertum: «Para voar ao deserto.» Notável cousa, que não debalde lhe chamou o mesmo Profeta grande maravilha. Esta mulher estava no Céu: Signum magnum apparauit in caelo, mulier amicta sole. Pois se a mulher estava no Céu e o deserto na terra, como lhe dão asas para voar ao deserto? Porque há asas para subir e asas para descer. As asas para subir são muito perigosas, as asas para descer muito seguras; e tais foram as de Santo António. Deram-se à alma de Santo António duas asas de águia, que foi aquela duplicada sabedoria natural e sobrenatural tão sublime, como sabemos. E ele que fez? Não estendeu as asas para subir, encolheu-as para descer; e tão encolhidas que, sendo a Arca do Testamento, era reputado, como já vos disse, por leigo e sem ciência. Voadores do mar (não falo com os da terra), imitai o vosso santo pregador. Se vos parece que as vossas barbatanas vos podem servir de asas, não as estendais para subir, porque vos não suceda encontrar com alguma vela ou algum costado; encolhei-as para descer, ide-vos meter no fundo em alguma cova; e se aí estiverdes mais escondidos, estareis mais seguros.

Mas já que estamos nas covas do mar, antes que saiamos delas, temos lá o irmão polvo, contra o qual têm suas queixas, e grandes, não menos que S. Basílio e Santo Ambrósio. O polvo com aquele seu capelo na cabeça, parece um monge; com aqueles seus raios estendidos, parece uma estrela; com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura, a mesma mansidão. E debaixo desta aparência tão modesta, ou desta hipocrisia tão santa, testemunham constantemente os dois grandes Doutores da Igreja latina e grega, que o dito polvo é o maior traidor do mar. Consiste esta traição do polvo primeiramente em se vestir ou pintar das mesmas cores de todas aquelas cores a que está pegado. As cores, que no camaleão são gala, no polvo são malícia; as figuras, que em Proteu são fábula, no polvo são verdade e artifício. Se está nos limos, faz-se verde; se está na areia, faz-se branco; se está no lodo, faz-se pardo: e se está em alguma pedra, como mais ordinariamente costuma estar, faz-se da cor da mesma pedra. E daqui que sucede? Sucede que outro peixe, inocente da traição, vai passando desacautelado, e o salteador, que está de emboscada dentro do seu próprio engano, lança-lhe os braços de repente, e fá-lo prisioneiro. Fizera mais Judas? Não fizera mais, porque não fez tanto. Judas abraçou a Cristo, mas outros o prenderam; o polvo é o que abraça e mais o que prende. Judas com os braços fez o sinal, e o polvo dos próprios braços faz as cordas. Judas é verdade que foi traidor, mas com lanternas diante; traçou a traição às escuras, mas executou-a muito às claras. O polvo, escurecendo-se a si, tira a vista aos outros, e a primeira traição e roubo que faz, é a luz, para que não distinga as cores. Vê, peixe aleivoso e vil, qual é a tua maldade, pois Judas em tua comparação já é menos traidor!

Oh que excesso tão afrontoso e tão indigno de um elemento tão puro, tão claro e tão cristalino como o da água, espelho natural não só da terra, senão do mesmo céu! Lá disse o Profeta por encarecimento, que «nas nuvens do ar até a água é escura»: Tenebrosa aqua in nubibus aeris. E disse nomeadamente nas nuvens do ar, para atribuir a escuridade ao outro elemento, e não à água; a qual em seu próprio elemento é sempre clara, diáfana e transparente, em que nada se pode ocultar, encobrir nem dissimular. E que neste mesmo elemento se crie, se conserve e se exercite com tanto dano do bem público um monstro tão dissimulado, tão fingido, tão astuto, tão enganoso e tão conhecidamente traidor!

Vejo, peixes, que pelo conhecimento que tendes das terras em que batem os vossas mares, me estais respondendo e convindo, que também nelas há falsidades, enganos, fingimentos, embustes, ciladas e muito maiores e mais perniciosas traições. E sobre o mesmo sujeito que defendeis, também podereis aplicar aos semelhantes outra propriedade muito própria; mas pois vós a calais, eu também a calo. Com grande confusão, porém, vos confesso tudo, e muito mais do que dizeis, pois não o posso negar. Mas ponde os olhos em António, vosso pregador, e vereis nele o mais puro exemplar da candura, da sinceridade e da verdade, onde nunca houve dolo, fingimento ou engano. E sabei também que para haver tudo isto em cada um de nós, bastava antigamente ser português, não era necessário ser santo.

Tenho acabado, irmãos peixes, os vossos louvores e repreensões, e satisfeito, como vos prometi, às duas obrigações do sal, posto que do mar, e não da terra: Vos estis sal terrae. Só resta fazer-vos uma advertência muito necessária, para os que viveis nestes mares. Como eles são tão esparcelados e cheios de baixios, bem sabeis que se perdem e dão à costa muitos navios, com que se enriquece o mar e a terra se empobrece. Importa, pois, que advirtais, que nesta mesma riqueza tendes um grande perigo, porque todos os que se aproveitam dos bens dos naufragantes, ficam excomungados e malditos.

Esta pena de excomunhão, que é gravíssima, não se pôs a vós senão aos homens, mas tem mostrado Deus por muitas vezes, que quando os animais cometem materialmente o que é proibido por esta lei, também eles incorrem, por seu modo, nas penas dela, e no mesmo ponto começam a definhar, até que acabam miseravelmente.

Mandou Cristo a S. Pedro que fosse pescar, e que na boca do primeiro peixe que tomasse, acharia uma moeda, com que pagar certo tributo. Se Pedro havia de tomar mais peixe que este, suposto que ele era o primeiro, do preço dele e dos outros podia fazer o dinheiro com que pagar aquele tributo, que era de uma só moeda de prata, e de pouco peso. Com que mistério manda logo o Senhor que se tire da boca deste peixe e que seja ele o que morra primeiro que os demais?

Ora estai atentos. Os peixes não batem moeda no fundo do mar, nem têm contratos com os homens, donde lhes possa vir dinheiro; logo, a moeda que este peixe tinha engolido, era de algum navio que fizera naufrágio naqueles mares. E quis mostrar o Senhor que as penas que S. Pedro ou seus sucessores fulminam contra os homens que tomam os bens dos naufragantes, também os peixes por seu modo as incorrem morrendo primeiro que os outros, e com o mesmo dinheiro que engoliram atravessado na garganta.

Oh que boa doutrina era esta para a terra, se eu não pregara para o mar! Para os homens não há mais miserável morte, que morrer com o alheio atravessado na garganta; porque é pecado de que o mesmo S. Pedro e o mesmo Sumo Pontífice não pode absolver. E posto que os homens incorrem a morte eterna, de que não são capazes os peixes, eles contudo apressam a sua temporal, como neste caso, se materialmente, como tenho dito, se não abstêm dos bens dos naufragantes.

Sermão de Santo António aos Peixes, Capítulo V | Padre António Vieira

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"Venere" - Sandro Botticelli "Ondados fios de ouro reluzente" Ondados fios de ouro reluzente, Que, agora da mão bela recolhidos, Agora sobre as rosas estendidos, Fazeis que a sua beleza se acrescente; Olhos, que vos moveis tão docemente, Em mil divinos raios encendidos, Se de cá me levais alma e sentidos, Que fora, se de vós não fora ausente? Honesto riso, que entre a mor fineza De perlas e corais nasce e parece, Se na alma em doces ecos não o ouvisse!... Se, imaginando só tanta beleza, De si em nova glória a alma se esquece, Que será quando a vir?... Ah! Quem a visse… Obras completas de Luís de Camões (1843, v. II)

O Ano da Morte de Ricardo Reis - José Saramago

O Ano da Morte de Ricardo Reis       Aqui o mar acaba e a terra principia. Chove sobre a cidade pálida, as águas do rio correm turvas de barro, há cheia nas lezírias. Um barco escuro sobe o fluxo soturno, é o Highland Brigade que vem atracar ao cais de Alcântara. O vapor é inglês, da Mala Real, usam-no para atravessar o Atlântico, entre Londres e Buenos Aires, com uma lançadeira nos caminhos do mar, para lá, para cá, escalando sempre os mesmos portos, La Plata, Montevideo, Santos, Rio de Janeiro, Pernambuco, Las Palmas, por esta ou inversa ordem, e, se não naufragar na viagem, ainda tocará em Vigo e Boulogne-sur-Mer, enfim entrará o Tamisa como agora vai entrando o Tejo, qual dos rios o maior, qual a aldeia. [...]    As crianças estrangeiras, a quem mais largamente dotou a natureza da virtude da curiosidade, querem saber o nome do lugar, e os pais informam-nas, ou declinam-no as amas, as nurses, as bonnes, as fräuleins, ou um marinheiro que passava para ir à manobra, Lisboa, Lis

"Amor fez a mim amar" - D. Dinis

"Amor fez a mim amar" Amor fez a mim amar gram temp'há unha molher que meu mal quis sempr' e quer, e me quis e quer matar; e bem o pod'acabar pois end'o poder houver. Mais Deus, que sab'a sobeja coita que m'ela dá, veja como vivo tam coitado; El mi ponha i recado. Tal molher mi fez Amor amar, que bem des entom nom mi deu se coita nom, e do mal sempr'o peior. Por end'a Nostro Senhor rogu'eu mui de coraçom que El m'ajud'em_a tam forte coita que par m'é de morte, e ao gram mal sobejo com que m'hoj'eu morrer vejo. A mim fez gram bem querer Amor ũa molher tal que sempre quis o meu mal e a que praz d'eu morrer. E, pois que o quer fazer, nom poss'eu fazer i al; mais Deus, que sab'o gram torto que mi tem, mi dê conorto a este mal sem mesura que tanto comigo dura. Amor fez a mim gram bem querer tal molher ond'hei sempre mal e haverei;

"Nascemos para Amar" - Barbosa du Bocage

"Nascemos para Amar" Nascemos para amar; a Humanidade  Vai, tarde ou cedo, aos laços da ternura.  Tu és doce atractivo, ó Formosura,  Que encanta, que seduz, que persuade.  Enleia-se por gosto a liberdade;  E depois que a paixão na alma se apura,  Alguns então lhe chamam desventura,  Chamam-lhe alguns então felicidade.  Qual se abisma nas lôbregas tristezas,  Qual em suaves júbilos discorre,  Com esperanças mil na ideia acesas.  Amor ou desfalece, ou pára, ou corre:  E, segundo as diversas naturezas,  Um porfia, este esquece, aquele morre.  Barbosa du Bocage, Sonetos

"Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades" - Luís de Camões

"Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades" Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, Muda-se o ser, muda-se a confiança:  Todo o mundo é composto de mudança,  Tomando sempre novas qualidades.  Continuamente vemos novidades,  Diferentes em tudo da esperança:  Do mal ficam as mágoas na lembrança,  E do bem (se algum houve) as saudades.  O tempo cobre o chão de verde manto,  Que já coberto foi de neve fria,  E em mim converte em choro o doce canto.  E afora este mudar-se cada dia,  Outra mudança faz de mor espanto,  Que não se muda já como soía.  Luís Vaz de Camões, Sonetos

PEREGRINAÇÃO - Fernão Mendes Pinto

Fernão Mendes Pinto (1510?-1583) nasceu em Montemor-o-Velho e faleceu em Almada. Pouco se sabe da vida real deste autor. Pensa-se que era um comerciante que negociava no Índico, entre o Japão, a Índia e a China. Regressou a Portugal por volta de 1557 e casou com D. Maria Correia Brito, instalando-se numa quinta do Pragal. Aí escreveu a Peregrinação , publicada postumamente em Lisboa em 1614. Devido a certa faceta hiperbólica, tornou-se conhecido como «Fernão, Mentes? Minto». PEREGRINAÇÃO CAP. I – Do que passei em minha mocidade neste reino até que me embarquei para a Índia Quando às vezes ponho diante dos olhos os muitos e grandes trabalhos e infortúnios que por mim passaram, começados no princípio da minha primeira idade e continuados pela maior parte e melhor tempo da minha vida, acho que com muita razão me posso queixar da ventura que parece que tomou por particular tenção e empresa sua perseguir-me e maltratar-me, como se isso lhe houvera de ser matéria de grande nome

Os Maias - Eça de Queirós

"O Ramalhete" (séc. XIX), Janelas Verdes, Lisboa Os Maias I A casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no outono de 1875, era conhecida na vizinhança da rua de S. Francisco de Paula, e em todo o bairro das Janelas Verdes, pela casa do Ramalhete ou simplesmente o Ramalhete. Apesar deste fresco nome de vivenda campestre, o Ramalhete, sombrio casarão de paredes severas, com um renque de estreitas varandas de ferro no primeiro andar, e por cima uma tímida fila de janelinhas abrigadas à beira do telhado, tinha o aspecto tristonho de Residência Eclesiástica que competia a uma edificação do reinado da Sr.ª D. Maria I: com uma sineta e com uma cruz no topo assemelhar-se-ia a um Colégio de Jesuítas. O nome de Ramalhete provinha, decerto, de um revestimento quadrado de azulejos fazendo painel no lugar heráldico do Escudo d'Armas, que nunca chegara a ser colocado, e representando um grande ramo de girassóis atado por uma fita onde se distinguiam letras e números de uma d

"MAR PORTUGUÊS" - Fernando Pessoa

"MAR PORTUGUÊS"  Possessio Maris  I. O Infante  Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.  Deus quis que a terra fosse toda uma,  Que o mar unisse, já não separasse.  Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,  E a orla branca foi de ilha em continente,  Clareou, correndo, até ao fim do mundo,  E viu-se a terra inteira, de repente,  Surgir, redonda, do azul profundo.  Quem te sagrou criou-te português.  Do mar e nós em ti nos deu sinal.  Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.  Senhor, falta cumprir-se Portugal!  II. Horizonte  Ó mar anterior a nós, teus medos  Tinham coral e praias e arvoredos.  Desvendadas a noite e a cerração,  As tormentas passadas e o mistério,  Abria em flor o Longe, e o Sul sidério  ’Splendia sobre as naus da iniciação.  Linha severa da longínqua costa —  Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta  Em árvores onde o Longe nada tinha;  Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:  E, no