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PEREGRINAÇÃO - Fernão Mendes Pinto


Fernão Mendes Pinto (1510?-1583) nasceu em Montemor-o-Velho e faleceu em Almada. Pouco se sabe da vida real deste autor. Pensa-se que era um comerciante que negociava no Índico, entre o Japão, a Índia e a China. Regressou a Portugal por volta de 1557 e casou com D. Maria Correia Brito, instalando-se numa quinta do Pragal. Aí escreveu a Peregrinação, publicada postumamente em Lisboa em 1614. Devido a certa faceta hiperbólica, tornou-se conhecido como «Fernão, Mentes? Minto».

PEREGRINAÇÃO

CAP. I – Do que passei em minha mocidade neste reino até que me embarquei para a Índia

Quando às vezes ponho diante dos olhos os muitos e grandes trabalhos e infortúnios que por mim passaram, começados no princípio da minha primeira idade e continuados pela maior parte e melhor tempo da minha vida, acho que com muita razão me posso queixar da ventura que parece que tomou por particular tenção e empresa sua perseguir-me e maltratar-me, como se isso lhe houvera de ser matéria de grande nome e de grande glória; porque vejo que, não contente de me pôr na minha Pátria logo no começo da minha mocidade, em tal estado que nela vivi sempre em misérias e em pobreza, e não sem alguns sobressaltos e perigos da vida, me quis também levar às partes da Índia, onde em lugar do remédio que eu ia buscar a elas as me foram crescendo com a idade os trabalhos e os perigos. Mas por outro lado, quando vejo que do meio de todos estes perigos e trabalhos me quis Deus tirar sempre a salvo e pôr-me em segurança, acho que não tenho tanta razão de me queixar de todos os males passados, quanta tenho de lhe dar graças por este só bem presente, pois me quis conservar a vida para que eu pudesse fazer esta rude e tosca escritura que por herança deixo a meus filhos (porque só para eles é minha intenção escrevê-la para que eles vejam nela estes meus trabalhos e perigos da vida que Passei no decurso de vinte e um anos, em que fui treze vezes cativo e dezassete vendido, nas partes da Ìndia, Etiópia, Arábia Feliz, China, Tartária, Macáçar, Samatra e outras muitas províncias daquele oriental arquipélago dos comfins da Ásia, a que os escritores chins, siameses, guéus, léquios, chamam em suas geografias a pestana do mundo, como ao adiante espero tratar muito particular e muito amplamente. Daqui por um lado tomem os homens motivo de não desanimarem com os trabalhos da vida para deixarem de fazer o que devem, porque não há nenhuns, por grandes que sejam, com que não possa a natureza humana, ajudada do favor divino, e por outro me ajudem a dar graças ao Senhor omnipotente por usar comigo da sua infinita misericórdia, apesar de todos meus pecados, porque eu entendo e confesso que deles me nasceram todos os males que por mim passaram, e dela as forças e o ânimo para os poder passar e escapar deles com vida. E tomando para princípio desta minha peregrinação o que passei neste Reino, digo que depois de ter vivido até à idade de dez ou doze anos na miséria e estreiteza da pobre casa de meu pai na vila de Montemor-o-Velho, um tio meu, parece que desejoso de me encaminhar para melhor fortuna, me trouxe para a cidade de Lisboa e me pôs ao serviço de uma senhora de geração assaz nobre e de parentes assaz ilustres, parecendo-lhe que pela valia tanto dela como deles poderia haver efeito o que ele pretendia para mim. Isto era no tempo em que na mesma cidade de Lisboa se quebraram os escudos pela morte de El-Rei D. Manuel, de gloriosa memória, que foi em dia de Santa Luzia, aos treze dias do mês de Dezembro do ano de 1521, de que eu estou bem lembrado, e de outra coisa mais antiga deste reino me não lembro. A intenção deste meu tio não teve o sucesso que ele imaginava, antes o teve muito diferente, porque havendo ano e meio, pouco mais ou menos, que eu estava ao serviço desta senhora, me sucedeu um caso que me pôs a vida em tanto risco que para a poder salvar me vi forçado a sair naquela mesma hora de casa, fugindo com a maior pressa que pude. E indo eu assim tão desatinado com o grande medo que levava, que não sabia por onde ia, como quem vira a morte diante dos olhos e a cada passo cuidava que a tinha comigo, fui ter ao cais da pedra onde achei uma caravela de Alfama que ia com cavalos e fato de um fidalgo para Setúbal, onde naquele tempo estava El-Rei D. João III, que santa glória haja com toda a corte, por causa da peste que então havia em muitos lugares do Reino: nesta caravela me embarquei eu, e ela partiu logo. Ao outro dia pela manhã, estando nós em frente de Sesimbra, nos atacou um corsário francês, o qual abalroando connosco, nos lançou dentro quinze ou vinte homens, os quais sem resistência ou reacção dos nossos, se assenhorearam do navio, e depois de o terem despojado de tudo quanto acharam nele, que valia mais de seis mil cruzados, o meteram no fundo; e a dezassete que escapámos com vida, atados de pés e mãos, nos meteram no seu navio com a intenção de nos venderem em Larache, para onde se dizia que iam carregados de armas que para negociar levavam aos mouros. E, trazendo-nos com esta determinação mais treze dias, banqueteados cada hora de muitos açoites, quis a sua boa fortuna que ao cabo deles, ao pôr do Sol, vissem um barco e seguindo-o aquela noite, guiados pela sua esteira, como velhos oficiais práticos naquela arte, a alcançaram antes de ser rendido o quarto da modorra, e dando-lhe três descargas de artilharia a abalroaram muito esforçadamente: e ainda q na defesa tivesse havido da parte dos nossos alguma resistência, isso não bastou para que os inimigos deixassem de entrar nela, com morte de seis portugueses e dez ou doze escravos.

Era este navio uma formosa nau de um mercador de Vila do Conde, que se chamava Silvestre Godinho, que outros mercadores de Lisboa traziam fretada de S. Tomé, com grande carregamento de açúcares e escravaria, a qual os pobres roubados, que lamentavam sua desventura, calculavam que valesse quarenta mil cruzados. Logo que estes corsários se viram com presa tão rica, mudando o propósito que antes traziam, se fizeram a caminho de França e levaram consigo alguns dos nossos para serviço da mareação da nau que tinham tomado. E aos outros mandaram uma noite lançar na praia de Melides, nus e descalços e alguns com muitas chagas dos açoites que tinham levado, os quais desta maneira foram ao outro dia ter a Santiago de Cacém, no qual lugar todos foram muito bem providos do necessário pela gente da terra, e principalmente por uma senhora que aí estava, de nome D. Brites, filha do conde de Vilanova, mulher de Alonso Perez Pantoja, comendador e alcaide-mor da mesma vila.

Depois que os feridos e os doentes foram convalescidos, cada um se foi para onde lhe pareceu que teria o remédio mais certo da vida, e o pobre de mim com outros seis ou sete tão desamparados como eu, fomos ter a Setúbal, onde me caiu em sorte mão de mim um fidalgo do Mestre de Santiago, de nome Francisco de Faria, o qual servi quatro anos, em satisfação dos quais me deu ao mesmo Mestre de Santiago, como seu moço de câmara, a quem servi um ano e meio. Mas porque o que então era costume dar-se nas casas dos príncipes me não bastasse para minha sustentação, determinei embarcar-me para a Índia, ainda que com poucas ilusões, já disposto a toda a ventura, ou má ou boa, que me sucedesse.

PEREGRINAÇÃO, Fernão Mendes Pinto (excerto): http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/fpinto.htm

PEREGRINAÇÃO: Resumo da Aventura de Fernão Mendes Pinto

A grande aventura de um português no Oriente constitui a primeira narrativa de viagens portuguesa. Fernão Mendes Pinto vai em busca de fortuna e regressa com histórias que não cabem no imaginário ocidental. Que mundo é este da Peregrinação quinhentista?

Andavam as caravelas portuguesas na epopeia dos Descobrimentos, quando Fernão Mendes Pinto decide embarcar à procura de novas oportunidades de negócio. A viagem encetada em 1537 irá durar 21 anos, um tempo de venturas e desventuras nos confins da Ásia, onde por 13 vezes é cativo e 17 vezes vendido. O que nenhum ocidental tinha até então observado é por ele relatado na primeira pessoa, espetador e personagem principal de uma realidade exótica, com povos, culturas, paisagens e animais fantásticos de terras que ficavam do outro lado do mundo.

Fernão Mendes Pinto escreve Peregrinação, uma narrativa descritiva, dinâmica e colorida da presença portuguesa no oriente, com informações importantes sobre a história e a geografia de outras civilizações, a que não faltam episódios de crueldade e duras críticas à atuação dos portugueses naquelas paragens e à desmesurada ganância dos homens. A veracidade de alguns relatos foi no entanto posta em causa e, o seu autor, desacreditado e rotulado de mentiroso. Realidade misturada com alguma ficção, certo é que este livro do aventureiro português é comparado em grandiosidade ao poema épico de Luís de Camões, seu contemporâneo.

Seguimos a história desta Peregrinação de uma vida, obra-prima publicada no início do século XVII, com sucesso imediato e traduções para as principais línguas europeias, no excerto do documentário “Grandes Livros”.







UNO LITERÁRIO [ direitos de Autor ]

"UM PIANO NA MINHA RUA..." | Fernando Pessoa

"UM PIANO NA MINHA RUA..." Um piano na minha rua… Crianças a brincar… O sol de domingo e a sua... Alegria a doirar… A mágoa que me convida A amar todo o indefinido… Eu tive pouco na vida Mas dói-me tê-lo perdido. Mas já a vida vai alta Em muitas mudanças! Um piano que me falta E eu não ser as crianças! Fernando Pessoa, Poesias

"Ondados fios de ouro reluzente" - Luís de Camões

"Venere" - Sandro Botticelli "Ondados fios de ouro reluzente" Ondados fios de ouro reluzente, Que, agora da mão bela recolhidos, Agora sobre as rosas estendidos, Fazeis que a sua beleza se acrescente; Olhos, que vos moveis tão docemente, Em mil divinos raios encendidos, Se de cá me levais alma e sentidos, Que fora, se de vós não fora ausente? Honesto riso, que entre a mor fineza De perlas e corais nasce e parece, Se na alma em doces ecos não o ouvisse!... Se, imaginando só tanta beleza, De si em nova glória a alma se esquece, Que será quando a vir?... Ah! Quem a visse… Obras completas de Luís de Camões (1843, v. II)

O Ano da Morte de Ricardo Reis - José Saramago

O Ano da Morte de Ricardo Reis       Aqui o mar acaba e a terra principia. Chove sobre a cidade pálida, as águas do rio correm turvas de barro, há cheia nas lezírias. Um barco escuro sobe o fluxo soturno, é o Highland Brigade que vem atracar ao cais de Alcântara. O vapor é inglês, da Mala Real, usam-no para atravessar o Atlântico, entre Londres e Buenos Aires, com uma lançadeira nos caminhos do mar, para lá, para cá, escalando sempre os mesmos portos, La Plata, Montevideo, Santos, Rio de Janeiro, Pernambuco, Las Palmas, por esta ou inversa ordem, e, se não naufragar na viagem, ainda tocará em Vigo e Boulogne-sur-Mer, enfim entrará o Tamisa como agora vai entrando o Tejo, qual dos rios o maior, qual a aldeia. [...]    As crianças estrangeiras, a quem mais largamente dotou a natureza da virtude da curiosidade, querem saber o nome do lugar, e os pais informam-nas, ou declinam-no as amas, as nurses, as bonnes, as fräuleins, ou um marinheiro que passava para ir à manobra, Lisboa, Lis

"Amor fez a mim amar" - D. Dinis

"Amor fez a mim amar" Amor fez a mim amar gram temp'há unha molher que meu mal quis sempr' e quer, e me quis e quer matar; e bem o pod'acabar pois end'o poder houver. Mais Deus, que sab'a sobeja coita que m'ela dá, veja como vivo tam coitado; El mi ponha i recado. Tal molher mi fez Amor amar, que bem des entom nom mi deu se coita nom, e do mal sempr'o peior. Por end'a Nostro Senhor rogu'eu mui de coraçom que El m'ajud'em_a tam forte coita que par m'é de morte, e ao gram mal sobejo com que m'hoj'eu morrer vejo. A mim fez gram bem querer Amor ũa molher tal que sempre quis o meu mal e a que praz d'eu morrer. E, pois que o quer fazer, nom poss'eu fazer i al; mais Deus, que sab'o gram torto que mi tem, mi dê conorto a este mal sem mesura que tanto comigo dura. Amor fez a mim gram bem querer tal molher ond'hei sempre mal e haverei;

"Nascemos para Amar" - Barbosa du Bocage

"Nascemos para Amar" Nascemos para amar; a Humanidade  Vai, tarde ou cedo, aos laços da ternura.  Tu és doce atractivo, ó Formosura,  Que encanta, que seduz, que persuade.  Enleia-se por gosto a liberdade;  E depois que a paixão na alma se apura,  Alguns então lhe chamam desventura,  Chamam-lhe alguns então felicidade.  Qual se abisma nas lôbregas tristezas,  Qual em suaves júbilos discorre,  Com esperanças mil na ideia acesas.  Amor ou desfalece, ou pára, ou corre:  E, segundo as diversas naturezas,  Um porfia, este esquece, aquele morre.  Barbosa du Bocage, Sonetos

"Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades" - Luís de Camões

"Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades" Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, Muda-se o ser, muda-se a confiança:  Todo o mundo é composto de mudança,  Tomando sempre novas qualidades.  Continuamente vemos novidades,  Diferentes em tudo da esperança:  Do mal ficam as mágoas na lembrança,  E do bem (se algum houve) as saudades.  O tempo cobre o chão de verde manto,  Que já coberto foi de neve fria,  E em mim converte em choro o doce canto.  E afora este mudar-se cada dia,  Outra mudança faz de mor espanto,  Que não se muda já como soía.  Luís Vaz de Camões, Sonetos

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"MAR PORTUGUÊS" - Fernando Pessoa

"MAR PORTUGUÊS"  Possessio Maris  I. O Infante  Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.  Deus quis que a terra fosse toda uma,  Que o mar unisse, já não separasse.  Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,  E a orla branca foi de ilha em continente,  Clareou, correndo, até ao fim do mundo,  E viu-se a terra inteira, de repente,  Surgir, redonda, do azul profundo.  Quem te sagrou criou-te português.  Do mar e nós em ti nos deu sinal.  Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.  Senhor, falta cumprir-se Portugal!  II. Horizonte  Ó mar anterior a nós, teus medos  Tinham coral e praias e arvoredos.  Desvendadas a noite e a cerração,  As tormentas passadas e o mistério,  Abria em flor o Longe, e o Sul sidério  ’Splendia sobre as naus da iniciação.  Linha severa da longínqua costa —  Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta  Em árvores onde o Longe nada tinha;  Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:  E, no