"ORTOGRAFIA, LUSOFONIA E PRECONCEITOS"
Há algumas semanas, fomos surpreendidos - ou talvez não - por notícias vindas a lume na imprensa que se faziam eco de um certo mal-estar na universidade portuguesa. Esse desconforto estribava-se na incapacidade revelada por alguns professores para lidarem com alunos oriundos de outros países de língua portuguesa, mormente timorenses e brasileiros, ao ponto de, não raro, os alunos desses países serem brindados com uma muito desagradável frase: «Fale português!». No caso timorense, não conheço bem a realidade de um país em que durante a ocupação indonésia - que durou duas décadas e meia - o português nem sequer foi leccionado. No caso brasileiro, os equívocos são muitos dos dois lados do Atlântico, mas – creio eu – de forma mais acentuada em Portugal, não obstante as relações sempre amistosas entre os dois países.
O Brasil tornou-se independente da então coroa portuguesa há perto de duzentos anos e a distância, o atraso português em recursos e em suportes impressos de divulgação da língua, bem como a realidade dinâmica e plurifacetada do Brasil, um país que é o quinto maior do mundo em superfície e que tem hoje mais de duzentos milhões de habitantes, constituíram um caldo de cultura propício ao desenvolvimento de uma variante muito própria do idioma comum que não empobreceu a língua portuguesa, mas antes a enriqueceu de vocábulos muito peculiares e de uma criatividade ímpar.
A recente contestação ao novo Acordo Ortográfico da língua portuguesa justifica-se pelas opções muito discutíveis adoptadas pelos seus promotores e entusiastas, nomeadamente a supressão das consoantes mudas, a eliminação de acentos gráficos e o afastamento da sua ortografia em relação à etimologia de cada vocábulo. No entanto, tirante um punhado de especialistas, de professores de Português e de amantes da língua que legitimamente se opõem ao Acordo com argumentos sólidos e científicos, muitos dos cidadãos comuns opõem-se ao Acordo tão-só porque consideram que se trata de uma concessão aos brasileiros. Muitos pensam até que o que vem do Brasil em termos literários e científicos tem menor qualidade, um pouco na lógica de trincheira do «somos poucos mas bons» ou «pobrezinhos mas puros». Ora, a diversidade de uma língua é um indiscutível factor de enriquecimento. Se o português é hoje uma das línguas mais importantes do mundo em número total de falantes, devemo-lo acima de tudo aos nossos irmãos brasileiros que são, como já referi, cerca de 200 milhões, contra apenas 10 milhões de portugueses, pouco mais de 20 milhões de angolanos e outro tanto de moçambicanos, menos de 2 milhões de guineenses, pouco mais de 1 milhão de timorenses, cerca de 500 mil cabo-verdianos e aproximadamente 200 mil são – tomenses.
Por outras palavras, a expansão da língua portuguesa no mundo seria muito mais difícil se, por um mero acaso, se prescindisse do contributo brasileiro. A cultura, o espectáculo e o desporto brasileiros, aliás, estão muito presentes em Portugal através da música – a MPB foi sempre muito apreciada em Portugal e os seus cantores acarinhados -, das novelas (embora menos do que no passado) ou do futebol. Porém, a literatura, exceptuando alguns clássicos, não é assim tão conhecida quanto se supõe. A criação há poucos anos da Companhia das Letras Portugal, bem como a inauguração - em Maio do ano passado - da Livraria da Travessa, em Lisboa, podem contribuir para o estreitamento dos laços entre os dois países ao nível da literatura. Embora haja autores brasileiros publicados por editoras portuguesas e vice – versa, muito há a fazer para que esse conhecimento mútuo seja mais efectivo. Quando se fala em literatura, pensa-se sobretudo na ficção, na poesia, no romance, eventualmente no conto ou na novela, mas a literatura é igualmente ensaio ou reflexão crítica e também neste âmbito é pena que em Portugal não esteja mais divulgada – ou não atinja um público mais alargado - a obra ensaística, de primeiríssima água, de Silviano Santiago, um crítico profundo, moderno e cosmopolita, para além de um talentoso ficcionista. Mesmo no caso de um crítico ou professor universitário mais conhecido como o não há muito falecido António Cândido, prémio Camões em 1998, a sua obra não está propriamente disponível em editoras portuguesas. Felizmente, a supracitada Livraria da Travessa tem no seu acervo vários livros de António Cândido, publicados pela editora brasileira Ouro sobre Azul. Quanto a materiais didácticos da língua portuguesa, convém não esquecer que são brasileiros dois dicionários de referência da nossa língua comum: o actual Dicionário Houaiss e o mais antigo Dicionário Aurélio. Acresce que os brasileiros traduzem muito e os editores do país -irmão interessam-se por autores de várias latitudes enquanto em Portugal há um domínio avassalador dos autores anglo-americanos (como outrora havia um nítida supremacia de autores franceses).
Os brasileiros, falando o seu mavioso português com açúcar, têm também enriquecido a língua através do surgimento de expressões populares de uma notável criatividade (algumas dos quais entraram até no quotidiano português). É impossível – digo eu - não achar graça a expressões como «cortar o barato de alguém», «puxar o saco» (e o muito delicioso substantivo «puxa-saquismo») «não ser a minha praia», «estar de chamego por alguém», «Ser amarrado em alguém ou em alguma coisa», «arrastar um bonde por alguém», «dar um chá de sumiço» e muitas outras que seria fastidioso – embora paradoxalmente agradável - estar aqui enunciando. Também gosto particularmente do uso constante do gerúndio (que no Brasil chamam mais gerundivo) que em Portugal (à excepção de algumas regiões como o Alentejo) se vai perdendo.
A minha perspectiva pode não ser partilhada (ou compartilhada) pelos meus preclaros leitores e amigos, mas há um comportamento relacionado com esta temática que tenho dificuldade em aceitar: é o daquelas pessoas que se preocupam muito com a pronúncia ou a linguagem brasileiras mas pouco se importam com os estrangeirismos (de raiz anglo-americana ou outra) que por aí pululam, não raro a despropósito. Não tenho nada contra o emprego pontual de termos estrangeiros sempre que isso se justifique ou até aqui ou ali por alguma afectação, por uma suave «coquetterie», mas não sem qualquer razão ou por mero provincianismo.
Seja como for, o futuro da língua portuguesa só pode ser um futuro plural, com as idiossincrasias de cada país e de cada cultura. Os portugueses não são donos da sua língua, assim como os ingleses, os franceses ou os espanhóis não o são das suas respectivas línguas. Não há nenhuma superioridade de princípio de um escritor português sobre um brasileiro, um angolano ou um moçambicano; nem de um inglês sobre um americano, um canadiano ou um australiano, de um francês sobre um senegalês, um marroquino ou um marfinense, ou de um espanhol sobre um argentino, um mexicano ou um chileno, por exemplo.
Em português nos entendemos-ainda que pontualmente possamos desentender-nos – seja com sotaque luso, brasileiro, guineense ou outro. Assim como assim, somos todos diferentes, mas todos iguais, como reza uma certa máxima que por aí circula. Como um dia escreveu o grande Murilo Mendes – poeta brasileiro com fortes ligações a Portugal -, «o homem é o único animal que joga no bicho».
© Fernando Couto e Santos