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"ORTOGRAFIA, LUSOFONIA E PRECONCEITOS" | Fernando Couto e Santos


"ORTOGRAFIA, LUSOFONIA E PRECONCEITOS"


Há algumas semanas, fomos surpreendidos - ou talvez não - por notícias vindas a lume na imprensa que se faziam eco de um certo mal-estar na universidade portuguesa. Esse desconforto estribava-se na incapacidade revelada por alguns professores para lidarem com alunos oriundos de outros países de língua portuguesa, mormente timorenses e brasileiros, ao ponto de, não raro, os alunos desses países serem brindados com uma muito desagradável frase: «Fale português!». No caso timorense, não conheço bem a realidade de um país em que durante a ocupação indonésia - que durou duas décadas e meia - o português nem sequer foi leccionado. No caso brasileiro, os equívocos são muitos dos dois lados do Atlântico, mas – creio eu – de forma mais acentuada em Portugal, não obstante as relações sempre amistosas entre os dois países.
O Brasil tornou-se independente da então coroa portuguesa há perto de duzentos anos e a distância, o atraso português em recursos e em suportes impressos de divulgação da língua, bem como a realidade dinâmica e plurifacetada do Brasil, um país que é o quinto maior do mundo em superfície e que tem hoje mais de duzentos milhões de habitantes, constituíram um caldo de cultura propício ao desenvolvimento de uma variante muito própria do idioma comum que não empobreceu a língua portuguesa, mas antes a enriqueceu de vocábulos muito peculiares e de uma criatividade ímpar.
A recente contestação ao novo Acordo Ortográfico da língua portuguesa justifica-se pelas opções muito discutíveis adoptadas pelos seus promotores e entusiastas, nomeadamente a supressão das consoantes mudas, a eliminação de acentos gráficos e o afastamento da sua ortografia em relação à etimologia de cada vocábulo. No entanto, tirante um punhado de especialistas, de professores de Português e de amantes da língua que legitimamente se opõem ao Acordo com argumentos sólidos e científicos, muitos dos cidadãos comuns opõem-se ao Acordo tão-só porque consideram que se trata de uma concessão aos brasileiros. Muitos pensam até que o que vem do Brasil em termos literários e científicos tem menor qualidade, um pouco na lógica de trincheira do «somos poucos mas bons» ou «pobrezinhos mas puros». Ora, a diversidade de uma língua é um indiscutível factor de enriquecimento. Se o português é hoje uma das línguas mais importantes do mundo em número total de falantes, devemo-lo acima de tudo aos nossos irmãos brasileiros que são, como já referi, cerca de 200 milhões, contra apenas 10 milhões de portugueses, pouco mais de 20 milhões de angolanos e outro tanto de moçambicanos, menos de 2 milhões de guineenses, pouco mais de 1 milhão de timorenses, cerca de 500 mil cabo-verdianos e aproximadamente 200 mil são – tomenses.
Por outras palavras, a expansão da língua portuguesa no mundo seria muito mais difícil se, por um mero acaso, se prescindisse do contributo brasileiro. A cultura, o espectáculo e o desporto brasileiros, aliás, estão muito presentes em Portugal através da música – a MPB foi sempre muito apreciada em Portugal e os seus cantores acarinhados -, das novelas (embora menos do que no passado) ou do futebol. Porém, a literatura, exceptuando alguns clássicos, não é assim tão conhecida quanto se supõe. A criação há poucos anos da Companhia das Letras Portugal, bem como a inauguração - em Maio do ano passado - da Livraria da Travessa, em Lisboa, podem contribuir para o estreitamento dos laços entre os dois países ao nível da literatura. Embora haja autores brasileiros publicados por editoras portuguesas e vice – versa, muito há a fazer para que esse conhecimento mútuo seja mais efectivo. Quando se fala em literatura, pensa-se sobretudo na ficção, na poesia, no romance, eventualmente no conto ou na novela, mas a literatura é igualmente ensaio ou reflexão crítica e também neste âmbito é pena que em Portugal não esteja mais divulgada – ou não atinja um público mais alargado - a obra ensaística, de primeiríssima água, de Silviano Santiago, um crítico profundo, moderno e cosmopolita, para além de um talentoso ficcionista. Mesmo no caso de um crítico ou professor universitário mais conhecido como o não há muito falecido António Cândido, prémio Camões em 1998, a sua obra não está propriamente disponível em editoras portuguesas. Felizmente, a supracitada Livraria da Travessa tem no seu acervo vários livros de António Cândido, publicados pela editora brasileira Ouro sobre Azul. Quanto a materiais didácticos da língua portuguesa, convém não esquecer que são brasileiros dois dicionários de referência da nossa língua comum: o actual Dicionário Houaiss e o mais antigo Dicionário Aurélio. Acresce que os brasileiros traduzem muito e os editores do país -irmão interessam-se por autores de várias latitudes enquanto em Portugal há um domínio avassalador dos autores anglo-americanos (como outrora havia um nítida supremacia de autores franceses).
Os brasileiros, falando o seu mavioso português com açúcar, têm também enriquecido a língua através do surgimento de expressões populares de uma notável criatividade (algumas dos quais entraram até no quotidiano português). É impossível – digo eu - não achar graça a expressões como «cortar o barato de alguém», «puxar o saco» (e o muito delicioso substantivo «puxa-saquismo») «não ser a minha praia», «estar de chamego por alguém», «Ser amarrado em alguém ou em alguma coisa», «arrastar um bonde por alguém», «dar um chá de sumiço» e muitas outras que seria fastidioso – embora paradoxalmente agradável - estar aqui enunciando. Também gosto particularmente do uso constante do gerúndio (que no Brasil chamam mais gerundivo) que em Portugal (à excepção de algumas regiões como o Alentejo) se vai perdendo.
A minha perspectiva pode não ser partilhada (ou compartilhada) pelos meus preclaros leitores e amigos, mas há um comportamento relacionado com esta temática que tenho dificuldade em aceitar: é o daquelas pessoas que se preocupam muito com a pronúncia ou a linguagem brasileiras mas pouco se importam com os estrangeirismos (de raiz anglo-americana ou outra) que por aí pululam, não raro a despropósito. Não tenho nada contra o emprego pontual de termos estrangeiros sempre que isso se justifique ou até aqui ou ali por alguma afectação, por uma suave «coquetterie», mas não sem qualquer razão ou por mero provincianismo.
Seja como for, o futuro da língua portuguesa só pode ser um futuro plural, com as idiossincrasias de cada país e de cada cultura. Os portugueses não são donos da sua língua, assim como os ingleses, os franceses ou os espanhóis não o são das suas respectivas línguas. Não há nenhuma superioridade de princípio de um escritor português sobre um brasileiro, um angolano ou um moçambicano; nem de um inglês sobre um americano, um canadiano ou um australiano, de um francês sobre um senegalês, um marroquino ou um marfinense, ou de um espanhol sobre um argentino, um mexicano ou um chileno, por exemplo.
Em português nos entendemos-ainda que pontualmente possamos desentender-nos – seja com sotaque luso, brasileiro, guineense ou outro. Assim como assim, somos todos diferentes, mas todos iguais, como reza uma certa máxima que por aí circula. Como um dia escreveu o grande Murilo Mendes – poeta brasileiro com fortes ligações a Portugal -, «o homem é o único animal que joga no bicho».

© Fernando Couto e Santos

UNO LITERÁRIO [ direitos de Autor ]

"UM PIANO NA MINHA RUA..." | Fernando Pessoa

"UM PIANO NA MINHA RUA..." Um piano na minha rua… Crianças a brincar… O sol de domingo e a sua... Alegria a doirar… A mágoa que me convida A amar todo o indefinido… Eu tive pouco na vida Mas dói-me tê-lo perdido. Mas já a vida vai alta Em muitas mudanças! Um piano que me falta E eu não ser as crianças! Fernando Pessoa, Poesias

"Ondados fios de ouro reluzente" - Luís de Camões

"Venere" - Sandro Botticelli "Ondados fios de ouro reluzente" Ondados fios de ouro reluzente, Que, agora da mão bela recolhidos, Agora sobre as rosas estendidos, Fazeis que a sua beleza se acrescente; Olhos, que vos moveis tão docemente, Em mil divinos raios encendidos, Se de cá me levais alma e sentidos, Que fora, se de vós não fora ausente? Honesto riso, que entre a mor fineza De perlas e corais nasce e parece, Se na alma em doces ecos não o ouvisse!... Se, imaginando só tanta beleza, De si em nova glória a alma se esquece, Que será quando a vir?... Ah! Quem a visse… Obras completas de Luís de Camões (1843, v. II)

O Ano da Morte de Ricardo Reis - José Saramago

O Ano da Morte de Ricardo Reis       Aqui o mar acaba e a terra principia. Chove sobre a cidade pálida, as águas do rio correm turvas de barro, há cheia nas lezírias. Um barco escuro sobe o fluxo soturno, é o Highland Brigade que vem atracar ao cais de Alcântara. O vapor é inglês, da Mala Real, usam-no para atravessar o Atlântico, entre Londres e Buenos Aires, com uma lançadeira nos caminhos do mar, para lá, para cá, escalando sempre os mesmos portos, La Plata, Montevideo, Santos, Rio de Janeiro, Pernambuco, Las Palmas, por esta ou inversa ordem, e, se não naufragar na viagem, ainda tocará em Vigo e Boulogne-sur-Mer, enfim entrará o Tamisa como agora vai entrando o Tejo, qual dos rios o maior, qual a aldeia. [...]    As crianças estrangeiras, a quem mais largamente dotou a natureza da virtude da curiosidade, querem saber o nome do lugar, e os pais informam-nas, ou declinam-no as amas, as nurses, as bonnes, as fräuleins, ou um marinheiro que passava para ir à manobra, Lisboa, Lis

"Amor fez a mim amar" - D. Dinis

"Amor fez a mim amar" Amor fez a mim amar gram temp'há unha molher que meu mal quis sempr' e quer, e me quis e quer matar; e bem o pod'acabar pois end'o poder houver. Mais Deus, que sab'a sobeja coita que m'ela dá, veja como vivo tam coitado; El mi ponha i recado. Tal molher mi fez Amor amar, que bem des entom nom mi deu se coita nom, e do mal sempr'o peior. Por end'a Nostro Senhor rogu'eu mui de coraçom que El m'ajud'em_a tam forte coita que par m'é de morte, e ao gram mal sobejo com que m'hoj'eu morrer vejo. A mim fez gram bem querer Amor ũa molher tal que sempre quis o meu mal e a que praz d'eu morrer. E, pois que o quer fazer, nom poss'eu fazer i al; mais Deus, que sab'o gram torto que mi tem, mi dê conorto a este mal sem mesura que tanto comigo dura. Amor fez a mim gram bem querer tal molher ond'hei sempre mal e haverei;

Sermão de Santo António aos Peixes | Padre António Vieira

Foto © Ró Mar | Museu de Santo António | Lisboa Sermão de Santo António aos Peixes V Descendo ao particular, direi agora, peixes, o que tenho contra alguns de vós. E começando aqui pela nossa costa: no mesmo dia em que cheguei a ela, ouvindo os roncadores e vendo o seu tamanho, tanto me moveram o riso como a ira. É possível que sendo vós uns peixinhos tão pequenos, haveis de ser as roncas do mar?! Se, com uma linha de coser e um alfinete torcido, vos pode pescar um aleijado, porque haveis de roncar tanto? Mas por isso mesmo roncais. Dizei-me: o espadarte porque não ronca? Porque, ordinariamente, quem tem muita espada, tem pouca língua. Isto não é regra geral; mas é regra geral que Deus não quer roncadores e que tem particular cuidado de abater e humilhar aos que muito roncam. S. Pedro, a quem muito bem conheceram vossos antepassados, tinha tão boa espada, que ele só avançou contra um exército inteiro de soldados romanos; e se Cristo lha não mandara meter na bainha, eu vos p

"Nascemos para Amar" - Barbosa du Bocage

"Nascemos para Amar" Nascemos para amar; a Humanidade  Vai, tarde ou cedo, aos laços da ternura.  Tu és doce atractivo, ó Formosura,  Que encanta, que seduz, que persuade.  Enleia-se por gosto a liberdade;  E depois que a paixão na alma se apura,  Alguns então lhe chamam desventura,  Chamam-lhe alguns então felicidade.  Qual se abisma nas lôbregas tristezas,  Qual em suaves júbilos discorre,  Com esperanças mil na ideia acesas.  Amor ou desfalece, ou pára, ou corre:  E, segundo as diversas naturezas,  Um porfia, este esquece, aquele morre.  Barbosa du Bocage, Sonetos

"Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades" - Luís de Camões

"Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades" Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, Muda-se o ser, muda-se a confiança:  Todo o mundo é composto de mudança,  Tomando sempre novas qualidades.  Continuamente vemos novidades,  Diferentes em tudo da esperança:  Do mal ficam as mágoas na lembrança,  E do bem (se algum houve) as saudades.  O tempo cobre o chão de verde manto,  Que já coberto foi de neve fria,  E em mim converte em choro o doce canto.  E afora este mudar-se cada dia,  Outra mudança faz de mor espanto,  Que não se muda já como soía.  Luís Vaz de Camões, Sonetos

Os Maias - Eça de Queirós

"O Ramalhete" (séc. XIX), Janelas Verdes, Lisboa Os Maias I A casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no outono de 1875, era conhecida na vizinhança da rua de S. Francisco de Paula, e em todo o bairro das Janelas Verdes, pela casa do Ramalhete ou simplesmente o Ramalhete. Apesar deste fresco nome de vivenda campestre, o Ramalhete, sombrio casarão de paredes severas, com um renque de estreitas varandas de ferro no primeiro andar, e por cima uma tímida fila de janelinhas abrigadas à beira do telhado, tinha o aspecto tristonho de Residência Eclesiástica que competia a uma edificação do reinado da Sr.ª D. Maria I: com uma sineta e com uma cruz no topo assemelhar-se-ia a um Colégio de Jesuítas. O nome de Ramalhete provinha, decerto, de um revestimento quadrado de azulejos fazendo painel no lugar heráldico do Escudo d'Armas, que nunca chegara a ser colocado, e representando um grande ramo de girassóis atado por uma fita onde se distinguiam letras e números de uma d

PEREGRINAÇÃO - Fernão Mendes Pinto

Fernão Mendes Pinto (1510?-1583) nasceu em Montemor-o-Velho e faleceu em Almada. Pouco se sabe da vida real deste autor. Pensa-se que era um comerciante que negociava no Índico, entre o Japão, a Índia e a China. Regressou a Portugal por volta de 1557 e casou com D. Maria Correia Brito, instalando-se numa quinta do Pragal. Aí escreveu a Peregrinação , publicada postumamente em Lisboa em 1614. Devido a certa faceta hiperbólica, tornou-se conhecido como «Fernão, Mentes? Minto». PEREGRINAÇÃO CAP. I – Do que passei em minha mocidade neste reino até que me embarquei para a Índia Quando às vezes ponho diante dos olhos os muitos e grandes trabalhos e infortúnios que por mim passaram, começados no princípio da minha primeira idade e continuados pela maior parte e melhor tempo da minha vida, acho que com muita razão me posso queixar da ventura que parece que tomou por particular tenção e empresa sua perseguir-me e maltratar-me, como se isso lhe houvera de ser matéria de grande nome

Amor de Perdição - Camilo Castelo Branco

Amor de Perdição  CAPÍTULO I  Domingos José Correia Botelho de Mesquita e Meneses, fidalgo de linhagem de uma das mais antigas casas de Vila Real de Trás-os-Montes, era, em 1779, juiz de fora de Cascais, e nesse mesmo ano casara com uma dama do paço, D. Rita Teresa Margarida Preciosa da Veiga Caldeirão Castelo Branco, filha de um capitão de cavalos, neta de outro, António de Azevedo Castelo Branco Pereira da Silva, tão notável pela sua hierarquia, como por um — naquele tempo famoso — livro que escrevera acerca da Arte da Guerra. Dez anos de um amor não correspondido, mantiveram em Lisboa o bacharel provinciano. Para fazer-se amar da formosa dama de D. Maria I faltavam-lhe dotes físicos: Domingos Botelho era extremamente feio. Para se inculcar como partido conveniente à pretendente, faltavam-lhe bens de fortuna: os haveres dele não excediam os trinta mil cruzados em propriedades no Douro. Os dotes de espírito também não o recomendavam: era alcançadíssimo de inteligência, e gra