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ODE A SARAMAGO | Frassino Machado



ODE A SARAMAGO

(Ano do seu Centenário, 1922 – 2022)


Foi poeta, sem ser Poeta,
Qual escritor inacabado,
Se o fosse, José Saramago
Estaria na “terra do pecado”.

A Poesia é uma arte nobre
Entre as artes admissíveis;
Mas, sentindo-se como pobre,
Ele criou “os poemas possíveis”.

A par desta arte poética,
Reconhecendo a submestria,
Ousou na rima e na métrica
“Provavelmente alegria”.

P´ los sociais horizontes
Sentindo o espírito envolto
Narrou seus temas co´ as fontes
“Deste mundo e do outro”.

P´ las janelas do seu olhar,
Mostrando rosto e semblante,
Fez, entre escolhos, transitar
“A bagagem do viajante”.

Nunca estacionou no tempo.
Fintando qualquer revês
Tratou bem e com talento
D´ “o ano de 1993”.

Em temáticas especiais,
Por delicados fragmentos,
Narrou em traços magistrais,
Destacando “os apontamentos”.

A sua mente era brilhante,
Por entre ambientes refulgia,
Como um eterno estudante,
“Manual de pintura e caligrafia”.

Por uma instável nostalgia
Com su´ alma fazendo base,
Sem tristeza nem arrelia,
Contava claro “objeto quase”.

Por dentro e por fora, ao mundo
Em toda a coisa reconhecido,
Deu-lhe em sentido profundo
“Poética dos cinco sentidos: o ouvido”.

Intolerâncias e leviandades,
Qualquer que fosse a razão,
Destacava as frontalidades
De quem fosse “levantado do chão”.

Estava sempre lá fora, cá dentro
Gesto a gesto, ao natural,
Mas, com franco sentimento,
Optava na “viagem a Portugal”.

Honrando a tradição e a história,
Cavou até ao fundamento,
Fazendo jus à fiel memória
No seu “memorial do convento”.

A vida dá milhares de lições,
Quer nos factos, quer nas leis,
Ficando no cume das emoções
“O ano da morte de Ricardo Reis”.

A vida é um mar sem fim
Quem o enfrenta só medra
À luz de um bom farolim
E da “a jangada de pedra”.

Há factos, que são mensagem
Que nos faz lembrança boa,
Mas eleva-nos pela coragem
“História do cerco de Lisboa”.

E a César o que é de César,
Há, sim, que acreditar nisto,
Tendo como correcto limiar
“O evangelho segundo Jesus Cristo”.

Toda a escrita a publicitar
Merece um gentil laçarote
Ainda mais se mencionar
“Cadernos de Lanzarote”.

Deve ser clara como água,
Escrita de qualquer maneira,
Sendo à prova de toda a mágoa
“Ensaio sobre a cegueira”.

Em torrentes de mar alto
Há sempre um herói à toa
Alguém fica em sobressalto
Com “moby dick em Lisboa”.

Belo enredo romanceado,
Com farturas ou com fomes,
Ninguém sai afidalgado
No livro de “todos os nomes”.

Para adulto ou novato,
Em qualquer idade da vida,
É narrativa de bom trato
“O conto da ilha desconhecida”.

Há nuances que favorecem
Quer elogios, quer críticas,
E há narrativas que tecem
Mil teias em “folhas políticas”.

Quanto de boa ficção
Há na literatura moderna,
Mas… quanto de imaginação
Ferve naquel´ “a Caverna”.

Nada melhor que a esperança
Pra alcançar valor profundo
Pois se sabe que toda a criança,
É a “maior flor do mundo”.

Ter vaidade e ser burguês
Dá num ser fragilizado,
Ter fé e ter honradez
É marca d´ “o homem duplicado”.

A incultura leva à ganância,
Sendo bom ou mau freguês,
A cultura mata a ignorância
No “ensaio sobre a lucidez”.

Nas instâncias da relação
É fácil perder-se o norte
Sendo sombra e perdição
“As intermitências da morte”.

Não são pequenas nem grandes
Elas são apenas meritórias,
Porque passam pelos Andes
Todas “as pequenas memórias”.

A maior de todas as viagens
Por essas terras avante
É feita de mil imagens
N´ “a viagem do elefante”.

As relações entre irmãos
Nem sempre têm bom fim,
Às vezes há sangue nas mãos
Como na estória de “caim”.

Nem sempre o sol brilha,
Nem sempre a vida é saloia,
Em dias claros, por maravilha,
Bate sempre na “claraboia”.

Meus barquinhos de papel
Trazem-me saudade e mágoa
Em memórias de painel
Pel´ “o silêncio da água”.

Nesta vida de guerra e paz
Ninguém aguenta as atoardas
Da humana violência que faz
Haver “alabardas… e espingardas…”.

Na cabeça duma criança
Baila o sonho com recato
Feito da pueril lembrança
Do receio d´ “o lagarto”.

Chega ao fim a minha Ode
De versos, que são fartote,
A inspiração já não pode
Co´ “último caderno de Lanzarote”.

Frassino Machado
In “Os Filhos da Esperança”

UNO LITERÁRIO [ direitos de Autor ]

"UM PIANO NA MINHA RUA..." | Fernando Pessoa

"UM PIANO NA MINHA RUA..." Um piano na minha rua… Crianças a brincar… O sol de domingo e a sua... Alegria a doirar… A mágoa que me convida A amar todo o indefinido… Eu tive pouco na vida Mas dói-me tê-lo perdido. Mas já a vida vai alta Em muitas mudanças! Um piano que me falta E eu não ser as crianças! Fernando Pessoa, Poesias

"Ondados fios de ouro reluzente" - Luís de Camões

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O Ano da Morte de Ricardo Reis - José Saramago

O Ano da Morte de Ricardo Reis       Aqui o mar acaba e a terra principia. Chove sobre a cidade pálida, as águas do rio correm turvas de barro, há cheia nas lezírias. Um barco escuro sobe o fluxo soturno, é o Highland Brigade que vem atracar ao cais de Alcântara. O vapor é inglês, da Mala Real, usam-no para atravessar o Atlântico, entre Londres e Buenos Aires, com uma lançadeira nos caminhos do mar, para lá, para cá, escalando sempre os mesmos portos, La Plata, Montevideo, Santos, Rio de Janeiro, Pernambuco, Las Palmas, por esta ou inversa ordem, e, se não naufragar na viagem, ainda tocará em Vigo e Boulogne-sur-Mer, enfim entrará o Tamisa como agora vai entrando o Tejo, qual dos rios o maior, qual a aldeia. [...]    As crianças estrangeiras, a quem mais largamente dotou a natureza da virtude da curiosidade, querem saber o nome do lugar, e os pais informam-nas, ou declinam-no as amas, as nurses, as bonnes, as fräuleins, ou um marinheiro que passava para ir à manobra, Lisboa, Lis

"Amor fez a mim amar" - D. Dinis

"Amor fez a mim amar" Amor fez a mim amar gram temp'há unha molher que meu mal quis sempr' e quer, e me quis e quer matar; e bem o pod'acabar pois end'o poder houver. Mais Deus, que sab'a sobeja coita que m'ela dá, veja como vivo tam coitado; El mi ponha i recado. Tal molher mi fez Amor amar, que bem des entom nom mi deu se coita nom, e do mal sempr'o peior. Por end'a Nostro Senhor rogu'eu mui de coraçom que El m'ajud'em_a tam forte coita que par m'é de morte, e ao gram mal sobejo com que m'hoj'eu morrer vejo. A mim fez gram bem querer Amor ũa molher tal que sempre quis o meu mal e a que praz d'eu morrer. E, pois que o quer fazer, nom poss'eu fazer i al; mais Deus, que sab'o gram torto que mi tem, mi dê conorto a este mal sem mesura que tanto comigo dura. Amor fez a mim gram bem querer tal molher ond'hei sempre mal e haverei;

Sermão de Santo António aos Peixes | Padre António Vieira

Foto © Ró Mar | Museu de Santo António | Lisboa Sermão de Santo António aos Peixes V Descendo ao particular, direi agora, peixes, o que tenho contra alguns de vós. E começando aqui pela nossa costa: no mesmo dia em que cheguei a ela, ouvindo os roncadores e vendo o seu tamanho, tanto me moveram o riso como a ira. É possível que sendo vós uns peixinhos tão pequenos, haveis de ser as roncas do mar?! Se, com uma linha de coser e um alfinete torcido, vos pode pescar um aleijado, porque haveis de roncar tanto? Mas por isso mesmo roncais. Dizei-me: o espadarte porque não ronca? Porque, ordinariamente, quem tem muita espada, tem pouca língua. Isto não é regra geral; mas é regra geral que Deus não quer roncadores e que tem particular cuidado de abater e humilhar aos que muito roncam. S. Pedro, a quem muito bem conheceram vossos antepassados, tinha tão boa espada, que ele só avançou contra um exército inteiro de soldados romanos; e se Cristo lha não mandara meter na bainha, eu vos p

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"Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades" - Luís de Camões

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"O Ramalhete" (séc. XIX), Janelas Verdes, Lisboa Os Maias I A casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no outono de 1875, era conhecida na vizinhança da rua de S. Francisco de Paula, e em todo o bairro das Janelas Verdes, pela casa do Ramalhete ou simplesmente o Ramalhete. Apesar deste fresco nome de vivenda campestre, o Ramalhete, sombrio casarão de paredes severas, com um renque de estreitas varandas de ferro no primeiro andar, e por cima uma tímida fila de janelinhas abrigadas à beira do telhado, tinha o aspecto tristonho de Residência Eclesiástica que competia a uma edificação do reinado da Sr.ª D. Maria I: com uma sineta e com uma cruz no topo assemelhar-se-ia a um Colégio de Jesuítas. O nome de Ramalhete provinha, decerto, de um revestimento quadrado de azulejos fazendo painel no lugar heráldico do Escudo d'Armas, que nunca chegara a ser colocado, e representando um grande ramo de girassóis atado por uma fita onde se distinguiam letras e números de uma d

PEREGRINAÇÃO - Fernão Mendes Pinto

Fernão Mendes Pinto (1510?-1583) nasceu em Montemor-o-Velho e faleceu em Almada. Pouco se sabe da vida real deste autor. Pensa-se que era um comerciante que negociava no Índico, entre o Japão, a Índia e a China. Regressou a Portugal por volta de 1557 e casou com D. Maria Correia Brito, instalando-se numa quinta do Pragal. Aí escreveu a Peregrinação , publicada postumamente em Lisboa em 1614. Devido a certa faceta hiperbólica, tornou-se conhecido como «Fernão, Mentes? Minto». PEREGRINAÇÃO CAP. I – Do que passei em minha mocidade neste reino até que me embarquei para a Índia Quando às vezes ponho diante dos olhos os muitos e grandes trabalhos e infortúnios que por mim passaram, começados no princípio da minha primeira idade e continuados pela maior parte e melhor tempo da minha vida, acho que com muita razão me posso queixar da ventura que parece que tomou por particular tenção e empresa sua perseguir-me e maltratar-me, como se isso lhe houvera de ser matéria de grande nome

Amor de Perdição - Camilo Castelo Branco

Amor de Perdição  CAPÍTULO I  Domingos José Correia Botelho de Mesquita e Meneses, fidalgo de linhagem de uma das mais antigas casas de Vila Real de Trás-os-Montes, era, em 1779, juiz de fora de Cascais, e nesse mesmo ano casara com uma dama do paço, D. Rita Teresa Margarida Preciosa da Veiga Caldeirão Castelo Branco, filha de um capitão de cavalos, neta de outro, António de Azevedo Castelo Branco Pereira da Silva, tão notável pela sua hierarquia, como por um — naquele tempo famoso — livro que escrevera acerca da Arte da Guerra. Dez anos de um amor não correspondido, mantiveram em Lisboa o bacharel provinciano. Para fazer-se amar da formosa dama de D. Maria I faltavam-lhe dotes físicos: Domingos Botelho era extremamente feio. Para se inculcar como partido conveniente à pretendente, faltavam-lhe bens de fortuna: os haveres dele não excediam os trinta mil cruzados em propriedades no Douro. Os dotes de espírito também não o recomendavam: era alcançadíssimo de inteligência, e gra