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Aparição - Vergílio Ferreira

Aparição

    Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro. Uma lua quente de verão entra pela varanda, ilumina uma jarra de flores sobre a mesa. Olho essa jarra, essas flores, e escuto o indício de um rumor de vida, o sinal obscuro de uma memória de origens. No chão da velha casa a água da lua fascina-me. Tento, há quanto anos, vencer a dureza dos dias, das ideias solidificadas, a espessura dos hábitos, que me constrange e tranquiliza. Tento descobrir a face última das coisas e ler aí a minha verdade perfeita. Mas tudo esquece tão cedo, tudo e tão cedo inacessível. Nesta casa enorme e deserta, nesta noite ofegante, neste silêncio de estalactites, a lua sabe a minha voz primordial. Venho à varanda e debruço-me para a noite. Uma aragem quente banha-me a face, os cães ladram ao longe desde o escuro das quintas, fremem no ar os insectos nocturnos. Ah, o sol ilude e reconforta. Esta cadeira em que me sento, a mesa, o cinzeiro de vidro, eram objectos inertes, dominados, todos revelados às minhas mãos. Eis que os trespassa agora este fluido inicial e uma presença estremece na sua face de espectros... Mas dizer isto é tão absurdo! Sinto, sinto nas vísceras a aparição fantástica das coisas, das ideias, de mim, e uma palavra que o diga coalha-me logo em pedra. Nada mais há na vida do que o sentir original, aí onde mal se instalam as palavras, como cinturões de ferro, aonde não chega o comércio das ideias cunhadas que circulam, se guardam nas algibeiras. Eu te odeio, meu irmão das palavras que já sabes um vocábulo para este alarme de vísceras e dormes depois tranquilo e me apontas a cartilha onde tudo já vinha escrito... E eu te digo que nada estava escrito, porque é novo e fugaz e invenção de cada hora o que nos vibra nos ossos e nos escorre de suor quando se ergue à nossa face.
    A mancha da luz floresce como o vapor de uma lenda. Um bafo quente sobe dessa água, sagra-se de silêncio como um dedo na fronte. E outra vez agora me deslumbra, em alarme, a presença iluminada de mim a mim próprio, o eco longínquo das vozes que me trespassam. Como é difícil, miraculoso, pensá-lo. Quanta coisa aprendi e sei e está aí à minha disposição quando dela preciso. Mas esta simples verdade de que estou vivo, me habito em evidência, me sinto como um absoluto divino, esta certeza fulgurante de que ilumino o mundo, de que há uma força que me vem de dentro, me implanta na vida necessariamente, esta totalização de mim a mim próprio que me não deixa ver os meus olhos, pensar o meu pensamento, porque ela é esses meus olhos e esse meu pensamento, esta verdade que me queima quando vejo o absurdo da morte, se pretendo segurá-la em minhas mãos, revê-la nas horas de esquecimento, foge-me como fumo, deixa-me embrutecido, raivoso de surpresa e de ridículo... E, todavia, sei-o hoje, só há um problema para a vida, que é o de saber, saber a minha condição, e de restaurar a partir daí a plenitude e a autenticidade de tudo - da alegria, do heroísmo, da amargura, de cada gesto. Ah, ter a evidência ácida do milagre que sou, de como infinitamente é necessário que eu esteja vivo, e ver depois, em fulgor, que tenho de morrer. A minha presença de mim a mim próprio e a tudo o que me cerca é de dentro de mim que a sei - não do olhar dos outros. Os astros, a Terra, esta sala vazia são uma realidade, existem, mas é através de mim que se instalam em vida: a minha morte é o nada de tudo. Como é possível? Conheço-me o deus que recriou o mundo, o transformou, mora-me a infinidade de quantos sonhos, ideias, memórias, realizei em mim um prodígio de invenções, descobertas, que só eu sei, recriei à minha imagem tanta coisa bela e inverosímil. E este mundo complexo, amealhado com suor, com o sangue que me aquece, um dia, um dia, - eu o sei até à vertigem - será o nada absoluto, dos astros mortos, do silêncio. Mas tudo isto é quase falso, é quase estúpido só de estar a pensá-lo, a dizê-lo, porque a sua evidência é um milagre instantâneo. [...]

 Aparição (prólogo), Vergílio Ferreira 

Vergílio António Ferreira (Gouveia, Melo, 28 de janeiro de 1916 — Lisboa, 1 de março de 1996)


UNO LITERÁRIO [ direitos de Autor ]

"UM PIANO NA MINHA RUA..." | Fernando Pessoa

"UM PIANO NA MINHA RUA..." Um piano na minha rua… Crianças a brincar… O sol de domingo e a sua... Alegria a doirar… A mágoa que me convida A amar todo o indefinido… Eu tive pouco na vida Mas dói-me tê-lo perdido. Mas já a vida vai alta Em muitas mudanças! Um piano que me falta E eu não ser as crianças! Fernando Pessoa, Poesias

"Ondados fios de ouro reluzente" - Luís de Camões

"Venere" - Sandro Botticelli "Ondados fios de ouro reluzente" Ondados fios de ouro reluzente, Que, agora da mão bela recolhidos, Agora sobre as rosas estendidos, Fazeis que a sua beleza se acrescente; Olhos, que vos moveis tão docemente, Em mil divinos raios encendidos, Se de cá me levais alma e sentidos, Que fora, se de vós não fora ausente? Honesto riso, que entre a mor fineza De perlas e corais nasce e parece, Se na alma em doces ecos não o ouvisse!... Se, imaginando só tanta beleza, De si em nova glória a alma se esquece, Que será quando a vir?... Ah! Quem a visse… Obras completas de Luís de Camões (1843, v. II)

O Ano da Morte de Ricardo Reis - José Saramago

O Ano da Morte de Ricardo Reis       Aqui o mar acaba e a terra principia. Chove sobre a cidade pálida, as águas do rio correm turvas de barro, há cheia nas lezírias. Um barco escuro sobe o fluxo soturno, é o Highland Brigade que vem atracar ao cais de Alcântara. O vapor é inglês, da Mala Real, usam-no para atravessar o Atlântico, entre Londres e Buenos Aires, com uma lançadeira nos caminhos do mar, para lá, para cá, escalando sempre os mesmos portos, La Plata, Montevideo, Santos, Rio de Janeiro, Pernambuco, Las Palmas, por esta ou inversa ordem, e, se não naufragar na viagem, ainda tocará em Vigo e Boulogne-sur-Mer, enfim entrará o Tamisa como agora vai entrando o Tejo, qual dos rios o maior, qual a aldeia. [...]    As crianças estrangeiras, a quem mais largamente dotou a natureza da virtude da curiosidade, querem saber o nome do lugar, e os pais informam-nas, ou declinam-no as amas, as nurses, as bonnes, as fräuleins, ou um marinheiro que passava para ir à manobra, Lisboa, Lis

"Amor fez a mim amar" - D. Dinis

"Amor fez a mim amar" Amor fez a mim amar gram temp'há unha molher que meu mal quis sempr' e quer, e me quis e quer matar; e bem o pod'acabar pois end'o poder houver. Mais Deus, que sab'a sobeja coita que m'ela dá, veja como vivo tam coitado; El mi ponha i recado. Tal molher mi fez Amor amar, que bem des entom nom mi deu se coita nom, e do mal sempr'o peior. Por end'a Nostro Senhor rogu'eu mui de coraçom que El m'ajud'em_a tam forte coita que par m'é de morte, e ao gram mal sobejo com que m'hoj'eu morrer vejo. A mim fez gram bem querer Amor ũa molher tal que sempre quis o meu mal e a que praz d'eu morrer. E, pois que o quer fazer, nom poss'eu fazer i al; mais Deus, que sab'o gram torto que mi tem, mi dê conorto a este mal sem mesura que tanto comigo dura. Amor fez a mim gram bem querer tal molher ond'hei sempre mal e haverei;

"Nascemos para Amar" - Barbosa du Bocage

"Nascemos para Amar" Nascemos para amar; a Humanidade  Vai, tarde ou cedo, aos laços da ternura.  Tu és doce atractivo, ó Formosura,  Que encanta, que seduz, que persuade.  Enleia-se por gosto a liberdade;  E depois que a paixão na alma se apura,  Alguns então lhe chamam desventura,  Chamam-lhe alguns então felicidade.  Qual se abisma nas lôbregas tristezas,  Qual em suaves júbilos discorre,  Com esperanças mil na ideia acesas.  Amor ou desfalece, ou pára, ou corre:  E, segundo as diversas naturezas,  Um porfia, este esquece, aquele morre.  Barbosa du Bocage, Sonetos

"Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades" - Luís de Camões

"Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades" Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, Muda-se o ser, muda-se a confiança:  Todo o mundo é composto de mudança,  Tomando sempre novas qualidades.  Continuamente vemos novidades,  Diferentes em tudo da esperança:  Do mal ficam as mágoas na lembrança,  E do bem (se algum houve) as saudades.  O tempo cobre o chão de verde manto,  Que já coberto foi de neve fria,  E em mim converte em choro o doce canto.  E afora este mudar-se cada dia,  Outra mudança faz de mor espanto,  Que não se muda já como soía.  Luís Vaz de Camões, Sonetos

Sermão de Santo António aos Peixes | Padre António Vieira

Foto © Ró Mar | Museu de Santo António | Lisboa Sermão de Santo António aos Peixes V Descendo ao particular, direi agora, peixes, o que tenho contra alguns de vós. E começando aqui pela nossa costa: no mesmo dia em que cheguei a ela, ouvindo os roncadores e vendo o seu tamanho, tanto me moveram o riso como a ira. É possível que sendo vós uns peixinhos tão pequenos, haveis de ser as roncas do mar?! Se, com uma linha de coser e um alfinete torcido, vos pode pescar um aleijado, porque haveis de roncar tanto? Mas por isso mesmo roncais. Dizei-me: o espadarte porque não ronca? Porque, ordinariamente, quem tem muita espada, tem pouca língua. Isto não é regra geral; mas é regra geral que Deus não quer roncadores e que tem particular cuidado de abater e humilhar aos que muito roncam. S. Pedro, a quem muito bem conheceram vossos antepassados, tinha tão boa espada, que ele só avançou contra um exército inteiro de soldados romanos; e se Cristo lha não mandara meter na bainha, eu vos p

PEREGRINAÇÃO - Fernão Mendes Pinto

Fernão Mendes Pinto (1510?-1583) nasceu em Montemor-o-Velho e faleceu em Almada. Pouco se sabe da vida real deste autor. Pensa-se que era um comerciante que negociava no Índico, entre o Japão, a Índia e a China. Regressou a Portugal por volta de 1557 e casou com D. Maria Correia Brito, instalando-se numa quinta do Pragal. Aí escreveu a Peregrinação , publicada postumamente em Lisboa em 1614. Devido a certa faceta hiperbólica, tornou-se conhecido como «Fernão, Mentes? Minto». PEREGRINAÇÃO CAP. I – Do que passei em minha mocidade neste reino até que me embarquei para a Índia Quando às vezes ponho diante dos olhos os muitos e grandes trabalhos e infortúnios que por mim passaram, começados no princípio da minha primeira idade e continuados pela maior parte e melhor tempo da minha vida, acho que com muita razão me posso queixar da ventura que parece que tomou por particular tenção e empresa sua perseguir-me e maltratar-me, como se isso lhe houvera de ser matéria de grande nome

Os Maias - Eça de Queirós

"O Ramalhete" (séc. XIX), Janelas Verdes, Lisboa Os Maias I A casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no outono de 1875, era conhecida na vizinhança da rua de S. Francisco de Paula, e em todo o bairro das Janelas Verdes, pela casa do Ramalhete ou simplesmente o Ramalhete. Apesar deste fresco nome de vivenda campestre, o Ramalhete, sombrio casarão de paredes severas, com um renque de estreitas varandas de ferro no primeiro andar, e por cima uma tímida fila de janelinhas abrigadas à beira do telhado, tinha o aspecto tristonho de Residência Eclesiástica que competia a uma edificação do reinado da Sr.ª D. Maria I: com uma sineta e com uma cruz no topo assemelhar-se-ia a um Colégio de Jesuítas. O nome de Ramalhete provinha, decerto, de um revestimento quadrado de azulejos fazendo painel no lugar heráldico do Escudo d'Armas, que nunca chegara a ser colocado, e representando um grande ramo de girassóis atado por uma fita onde se distinguiam letras e números de uma d

"MAR PORTUGUÊS" - Fernando Pessoa

"MAR PORTUGUÊS"  Possessio Maris  I. O Infante  Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.  Deus quis que a terra fosse toda uma,  Que o mar unisse, já não separasse.  Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,  E a orla branca foi de ilha em continente,  Clareou, correndo, até ao fim do mundo,  E viu-se a terra inteira, de repente,  Surgir, redonda, do azul profundo.  Quem te sagrou criou-te português.  Do mar e nós em ti nos deu sinal.  Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.  Senhor, falta cumprir-se Portugal!  II. Horizonte  Ó mar anterior a nós, teus medos  Tinham coral e praias e arvoredos.  Desvendadas a noite e a cerração,  As tormentas passadas e o mistério,  Abria em flor o Longe, e o Sul sidério  ’Splendia sobre as naus da iniciação.  Linha severa da longínqua costa —  Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta  Em árvores onde o Longe nada tinha;  Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:  E, no