"NOTA SOBRE O NASCIMENTO DO MEU SEMI-HETERÓNIMO, IR, EM DIÁLOGO COM ÁLVARO DE CAMPOS", Isabel Rosete.
«Na madrugada de 19 de Março de 2012 (Dia do Pai) sempre imersa, como em tantas outras, no solitário silêncio habitual da minha biblioteca – palco das minhas investigações, de muitas criações felizes e de alguns desesperos existenciais, que a escrita vai acolhendo e derramando – a propósito da re-leitura de algumas passagens do Livro do Desassossego do semi-heterónimo de Fernando António Nogueira Pessoa, Bernardo Soares, e da revisão do meu próximo livro, Fluxos da Memória (a publicar em breve), apercebi-me num instante repentino, como se de um relâmpago se tratasse, que para além da Isabel Rosete – há muito escritora de ensaios filosóficos, poéticos e literários (a publicar), ultimamente tornada poeta assumida (talvez desde 2008) – surgia uma “outra”, quiçá de si e/ou em si própria, auto-designada por IR. Aparece, entre os múltiplos poemas, assim o apurei de súbito, em variações temáticas ainda mais pessoais e intimistas, ainda mais despojadas e guerreiras. Surpreendi-me com o facto. Voltei aos livros anteriores, Vozes do Pensamento e ENTRE-CORPOS, aos textos publicados em Antologias poéticas nacionais e internacionais, com o intento específico de averiguar se IR também neles se apresentava deste modo explícito, contudo não desvelado na altura e, portanto, oculto na assinatura de Isabel Rosete. O “sim” disse-se de imediato. IR estava lá, está lá, mas não se expôs, como o faz agora em Fluxos da Memória. Não tinha consciência da sua existência, embora já fosse um semi-heterónimo. Restava, então, saber quem, exactamente, assinava e quando assinava com um e com o outro nome, não obstante IR ser, igualmente, uma abreviatura, uma rubrica, de Isabel Rosete, ambas incorporadas em Maria Isabel Rosete (suponho!).
– Mas, como surge IR, na qualidade de semi-heterónimo de Isabel Rosete, a pessoa e a poeta?
Eu, Isabel Rosete, assino como Isabel Rosete, sempre que escrevo na primeira pessoa do plural – Nós: Eu e todos os outros seres humanos que partilham e não partilham do meu pensamento, da minha voz erguida no seio das minhas reflexões filosóficas, psicológicas, sócio-políticas, éticas, estéticas, humanitárias; Eu como cidadã de alguns Mundos, eventualmente de todos os Mundos reais e possíveis; Eu um ser crítico e, até, mordaz, visceralmente revoltada com os indignos feitos dos Homens, pautados pela Hipocrisia, pela Inveja, pela Intolerância, pelo Preconceito, pela Violência sanguinária, pelos desequilíbrios ecológicos, pelas guerras feitas em nome da Paz adiada.
Eu, Isabel Rosete, assino como IR, quando escrevo na primeira pessoa do singular – Eu: Eu e apenas Eu, no meu mundo interior; Eu e apenas Eu, na minha intimidade mais profunda, que desce até às entranhas do meu Sentir; Eu e apenas Eu, nos versos que se soltam do meu pensamento sobre mim mesma – em modo de auto-crítica, em virtude da busca constante pela perfeição (possível) do meu ser e do meu estar – e sobre todos aqueles que passaram e passam pela minha vida, intimamente, deixando na minha alma e no meu corpo, sós, as suas marcas mais gloriosas ou mais tremendas; Eu e apenas Eu, na minha Identidade assumida, longe das máscaras e do fingimento, que tanto abomino.
– O que há de comum entre Isabel Rosete e IR na Poesia, em particular, e na Escrita, em geral?
Ambas escrevem para dar Voz Audível à sua alma e ao seu corpo, envoltos nas labirínticas teias do Pensar e do Sentir, em nome da transparência de cada palavra, da lucidez minuciosa de cada sílaba, da singela pureza de cada vogal, da sinceridade de cada consoante. Assim compõem em nome do Verbo, que liberta e purifica, que diz as coisas-mesmas no acto original e originário do seu ser e do seu aparecer, onde a Verdade (sempre) assoma contra o malabarismo das falsidades incutidas nas mentes sem Espírito-Crítico, mesmo que dissimuladamente.
Ambas defendem o mesmo estilo de Poesia, evidentemente não subordinado à trivial tirania da Rima, confundida, amiúde e por muitos, com o ser natural-próprio da Poesia, embora esta seja, tão-só, um dos modos de a criar e de a apresentar, no que concerne ao seu aspecto formal. Sabem que o verso, no seu sentido restrito, pode ser uma palavra ou um conjunto de palavras com um certo número de sílabas gramaticais ou métricas e com determinados acentos. Sabem que a Rima, toante ou consoante, essa correspondência de sons entre dois ou mais versos, não é, nem o elemento essencial do verso, nem da Poesia, apesar da repetição dos sons gerar uma impressão agradável ao ouvido, pelo que, muitas vezes, apenas permanecem os sons guardados nos seus auditores, fracassando a retenção do respectivo e essencial conteúdo – quando o há, de facto; quando a Rima não é forjada para parecer Poesia. Todavia, da Rima, e unicamente quanto à classificação dos seus versos, preferiram os soltos ou brancos, quase sempre longos, aqueles não aprisionados na conexão de sons, ritmados ou não por mero acaso, seguindo a espontaneidade natural da sua escrita.
Jamais se submetem às regras tradicionais de versificação. Exprimem-se em ritmo livre ou verso livre. Empregam os mais variados metros. Criam (talvez) imagens imprevistas – contudo, as suas próprias imagens do vivido, só algumas vezes sonhadas, mas sempre com todos os sentidos e os sentir(es) abertos e conjugados no Aberto –, procurando que o ritmo externo dos seus poemas (quando lidos) se adeque, o mais possível, ao seu ritmo interno, àquele sentido primeiro das suas emoções, sentimentos, pensamentos, ideias curtas ou longas.
As suas composições em verso não se integram, nem no género literário Épico, nem no Dramático. Não têm ou, ainda, não descobriram essa nobre façanha. Mas, atravessam o Lírico, sempre que expressam os seus próprios sentimentos, ou interpretam os dos outros. Dentro deste, surgem alguns Hinos, quando exaltam alguém/algo ou celebram algum facto das suas vidas. As Elegias também, visto que muitos dos poemas, tanto de IR como de Isabel Rosete, são inspirados em acontecimentos tristes. Claro que o Lírico, estas formas poéticas líricas, são moldadas aos seus estilos genuinamente pessoais (não obstante as influências, aqui e ali, dos seus Mestres), subjectivos, rondando sempre um certo dramatismo, à semelhança da Tragédia Grega, mas sem Coro, sem personagens, sem diálogos determinados, sem espectadores ficcionados. Apenas alguns discursos directos e indirectos, mormente em monólogo e/ou em diálogo imaginário com o público ausente, no momento da escrita, embora, em mente, todo o público possível que as lerá, sempre incógnito, sempre imprevisível.
Nunca escreveram Odes, Canções ou Sonetos, porque nunca se preocuparam em escolher um género literário específico (não lhes parece importante), porque apenas se centraram, ao invés e de sobremaneira, no conteúdo da sua escrita, cuja forma é ditada, instantaneamente, a qualquer momento, pelo seu pensamento livre e destemido, tão-só centrado na veraz autenticidade do dito, do transmitido de dentro para fora. Ou, talvez, porque não aprenderam, não sabem versejar nestes moldes.
Os seus poemas, se os quisermos classificar, são Estâncias regulares e irregulares, pares e ímpares, integrados no género Didáctico – Isabel Rosete, professora e aluna, não tinha como evitar o seu inato e contínuo desígnio de ensinar-aprender Filosofia, recentemente, também, através da sua poesia. Assim o verificaram numa das Gramáticas correntes da Língua Portuguesa, pautada pelo “antigo” Acordo Ortográfico (não aderiram ao “novo”), por mera curiosidade teórica e só quando confrontadas, pelos seus leitores, com a questão do “seu estilo” («qual é o seu estilo de poesia?», perguntavam eles; «Não sei. Talvez não tenha um “estilo”», respondia Isabel Rosete), só após o lançamento dos seus livros precedentes.
Ambas se reconhecem na mesma definição de Poesia: a do seu Mestre Álvaro de Campos, que escreve, de igual modo, em versos livres e longos. Quando têm dúvidas de teor poético-formal, lá estão elas dentro da obra de Campos, na condição de alunas ansiosas, à espera das respostas inéditas do seu sábio Professor. Comportam-se como se estivessem numa sala de aula, em diálogo com ele, questionando-o, para se esclarecerem e aperfeiçoarem, pois desejam ser poetas, de facto, tomar a Poesia como o seu ofício fundamental. Álvaro sempre as elucida, sentindo «tudo de todas as maneiras», como costuma dizer – (tão) Sensacionista, inteiramente entranhado no mundo das novas sensações fortes –, através dos seus poemas, de todas as linhas que escreveu, em poesia e em prosa, expondo, sem rodeios, as suas teses, Ele, tal-qualmente o Poeta Decadentista do "Opiário", dedicado a Mário de Sá-Carneiro, que «mora no rés-do-chão do pensamento», enterrado no tédio e no horror à vida, embriagado pelo ópio (um remédio, como salienta), em viagem por um Oriente inexistente, cansado da civilização onde nasceu, todavia, civilizado; Ele, o Futurista/Sensacionista, estampado na sua "Saudação a Walt Whitman", na "Ode Triunfal", na "Ode Marítima", nos "Dois Excertos de Odes" e na "Passagem das Horas", escrevendo, febril e «rangendo os dentes», «à dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica», olhando para o «Indefinido» «no cais deserto», qual «saudade de pedra»; Ele, o Intimista, embrulhado nas recordações desse mundo fantástico da infância, mergulhado no cepticismo e na dor de Pensar, tal como Pessoa, em angústia existencial e inquietação, nauseado, marcado pelo extremo cansaço, pela presença fustigante do vazio, pelo abatimento, desencantado perante si-mesmo e os outros, sozinho, no seu «cubículo de engenheiro», que elas não conheceram. É, deste modo, que se lhes apresenta na "Dactilografia", completamente isolado, remontando a quem é, e, na "Tabacaria", como um nada, apesar de carregar dentro de si "todos os sonhos do Mundo". (...)»