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Felizmente Há Luar! - Luís de Sttau Monteiro

Felizmente Há Luar!

       Personagens: 
       Manuel - O mais consciente dos populares 
       Rita - A mulher de Manuel 
       Antigo Soldado - Um antigo soldado do regimento de Gomes Freire 
       Vicente - Um provocador em vias de promoção 
       Dois Polícias - Iguais a todos os Polícias 
       Vários Populares - O pano de fundo permanente 
       D. Miguel Forjaz, Beresford, Principal Sousa - Três conscienciosos governadores do Reino
       Morais Sarmento, Andrade Corvo - dois denunciantes que honraram a classe 
     Frei Diogo de Melo - Um homem sério que destoaria nesta peça se nela não figurassem, também, 
       António de Sousa Falcão - O inseparável amigo, e 
       Matilde de Melo - A companheira de todas as horas de
      O General Gomes Freire d’Andrade - que está sempre presente, embora nunca apareça.

ACTO I

     Ao abrir o pano, a cena está às escuras, encontrando-se uma única personagem intensamente iluminada, ao centro e à frente do palco. Esta personagem está andrajosamente vestida. 
      Manuel Que posso eu fazer? Sim: que posso eu fazer?
      (Dá dois passos em direcção ao fundo do palco, detém-se, e continua) 
     Ao dizer isto, a personagem está quase de costas para os espectadores. Esta posição é deliberada. Pretende-se criar desde já, no público, a consciência de que ninguém, no decorrer desta peça, vai esboçar um gesto para o cativar ou para acamaradar com ele. (O réu não se senta ao lado dos juízes.) Muda de tom à voz. Está a imitar, com sarcasmo, alguém que se não sabe quem seja. Entende-se, todavia, que a personagem se refere ao ambiente político da época. 
      Volta ao seu tom de voz habitual. 
      Vê-se a gente livre dos Franceses, e zás!, cai na mão dos Ingleses! 
      E agora? Se acabamos com os Ingleses, ficamos na mão dos reis do Rossio... 
      Entre os três o diabo que escolha...
       (Pausa) 
   Deus todo-poderoso para a frente... Deus todo-poderoso para trás... Sua Majestade para a esquerda... Sua Majestade para a direita...
      (Pausa) 
     E enquanto eles andam para trás e para a frente, para a esquerda e para a direita, nós não passamos do mesmo sítio! 
       A pergunta não é dirigida a ninguém. 
       O gesto é lento, deliberadamente sarcástico. 
     Ilumina-se, subitamente, o fundo do palco. De pé e sentadas, várias figuras populares conversam. Algumas dormem estendidas no chão. Uma velha, sentada num caixote, cata piolhos a uma rapariga nova. 
      (Avança e detém-se junto duma mulher ainda nova, que dorme, no chão, coberta por uma saca.) 
      A Rita dorme. A que horas chegou ela? 
    1º Popular (Levantando-se dum salto e macaqueando as maneiras dum fidalgo, finge tirar um relógio do bolso dum colete inexistente) 
      Saiba, meu senhor, que a Senhora Dona Rita chegou tarde. 
      Eram quase cinco horas pelo meu relógio de ouro.
      (Finge levantar o relógio para o ver melhor. 
      Desfaz o gesto com violência e continua em tom raivoso) 
      Alguém aqui tem relógio? 
      (Como ninguém responde, volta a dirigir-se a Manuel) 
      O tom é irónico. 
      Esqueceram-se dos relógios em casa...
      Manuel - Está bem. Está bem.
      O primeiro popular volta a sentar-se. 
      Começa a ouvir-se, ao longe, o ruído de tambores. 
      Algumas personagens mostram alguma agitação. 
      (Dá um safanão na rapariga, que se volta a sentar e se levanta com lentidão) 
      São horas de nos irmos indo, mulher.
      Rita - Já?
      Manuel - Lembra-te do que temos de andar.
      (Ouve o som dos tambores) 
      Que é isto?
      (Todos se levantam e escutam a medo. Alguns pegam nos seus objectos pessoais - cestas, mantas esfarrapadas, uma abóbora, etc. - e preparam-se para fugir. Outros, parados, esperam que o som dos tambores indique a direcção da marcha das tropas. O ruído afasta-se. Ficam todos calados, indecisos.)
      Em tom de quem evoca o passado com saudade. 
      O grupo começa a prestar atenção ao diálogo. 
      1º Popular - Não vêm para cá.
    O Antigo Soldado - Estas cantigas são inventadas. No regimento de Freire d'Andrade São cantadas com o estilo De lá ré ó liberdade.
      1º Popular - Onde aprendeu vossemecê isso?
      O Antigo Soldado - Em Campo d'Ourique - já evoca o passado lá vão mais de dez anos - quando eu era soldado no regimento de Gomes Freire... 
       Aqui onde me vêem já andei nas guerras...
      Rita - Com o general?
      O Antigo Soldado - Com o general, pois!
      2º Popular - Conte lá, homem...
      3º Popular - Em que guerra é que vossemecê andou?
      Uma velha - E foi na guerra que aprendeu a cantar?
      (O antigo soldado ri-se) 
      Então onde foi, homem? 
    (Juntam-se todos à volta do antigo soldado, que se destaca do grupo e avança para o proscénio seguido de todos.) 
      O Antigo Soldado 
      (Olha para o alto, tentando recordar-se)
      Ora deixem ver... 
      Fala com entusiasmo. Vê-se que Gomes Freire é o seu herói.
    Uma noite, em Julho, os rapazes lá do quartel organizaram uma festa em honra da Senhora da Piedade. Vocês haviam de ter visto aquilo... A rapaziada fardada, no meio do povo... E raparigas? Aquilo é que era...
      (Dá um beliscão na cara de Rita) 
      Onde aparecia o regimento de Gomes Freire não faltavam raparigas! 
      Uma voz - E ele? 
      O Antigo Soldado - Ele? 
      Outra voz - O general, homem...
      O Antigo Soldado - Um amigo do povo! Um homem às direitas! Quem fez aquele não fez outro igual... 
      Este silêncio é pesado. As personagens olham para as mãos e para os lados. Foram longe de mais e sabem-no. Ainda têm nos ouvidos o ruído dos tambores, símbolo duma autoridade sempre presente e sempre pronta a interferir. 
      Fala muito depressa. Está cada vez mais excitado.
      Manuel - Se ele quisesse... 
      (Silêncio.) 
     Vicente - Se ele quisesse? Mas se ele quisesse o quê? Vocês ainda não estão fartos de generais? Cornetas, tambores, tiros e mais tiros... Bestas! 
      (Sobe a um caixote) 
      Tu, José: 
      (Aponta para um dos presentes) 
     Tens sete filhos com fome e com frio e vais para casa com as mãos a abanar. Julgas que o Gomes Freire os vai vestir? 
      (Aponta para outro) 
     E tu, que não comes desde ontem - estás com pressa de ir para a guerra? Julgas que matas a fome com as balas? Idiotas! Nenhum de vocês tem um tecto que o abrigue no Inverno, nenhum de vocês tem onde cair morto, mas, mal passa um tambor, não há um só que não queira ir atrás dos soldados. 
      Faz com as mãos o gesto de quem toca tambor.
      Pronuncia a palavra «rapaziada» com sarcasmo. 
      Fala alto, em tom de triunfo. 
      Catrapum! Catrapum! Catrapum, pum, pum! - Idiotas! 
      Olha lá: 
      (Aponta para o antigo soldado) 
     Se o teu Gomes Freire é tão bom como dizes e se a «rapaziada» lá do regimento é como tu a descreves, explica lá o que estás a fazer aqui... 
      (O antigo soldado encolhe os ombros) 
      Não abres a boca? Pois então falo eu! 
      (Para o grupo) 
     Este homem está aqui porque já não serve para nada. Ouviram? Está aqui porque já não interessa aos generais. O que eles querem é servir-se da gente! Quando um homem chega a velho e já não pode andar por montes e vales, de espingarda às costas, para eles se encherem de medalhas, tratam-no como um pobre fugido à Polícia: abandonam-no, mandam-no para a porta das igrej as pedir esmola, e que a Virgem se compadeça dele... 
       (Para o antigo soldado) 
      À medida que fala vai-se excitando cada vez mais. 
    Que te dizem eles, os teus lá vai-se excitando generais, os tais com quem cada vez mais. Te bateste, quando te encontram na rua, miserável, sem um naco de pão para comer? Sabes o que te dizem? Sabes? Viram-se para as mulheres, e justificam os cinco réis da esmola, dizendo que te bateste como um valente na campanha do Rossilhão. E tu? Matas a fome com os cinco réis e com a recordação da campanha. Mas eles... eles vão para casa encher a pança! 
      Disso podes estar certo... 
      O Antigo Soldado - O Gomes Freire não é desses. 
      Fala com escárnio: 
     Vicente - Não é desses... Não é desses... Então de quais é ele? Duns que não existem? É um santo, o teu general... 
      Abre os braços num gesto que abrange os presentes, o fundo do palco, a miséria... 
       O Antigo Soldado - Não é um santo, é um homem como todos nós, mas... 
     Vicente - «Mas»? Não há «mas» nem meio «mas». O que há é homens e generais. Ou se é por uns, ou se é por outros. O teu general, então, é perfeito: nem sequer é português... 
      (Muito excitado) 
      Estrangeirado: estrangeirado é que ele é!
    Manuel (Falando ao grupo) - Estrangeirado ou não, é capaz de se bater com os senhores do Rossio...
      Vicente - Mas não se bate! Vais ver que não se bate! E sabes porquê?
      (Volta a falar para o grupo) 
     Porque está feito com eles, porque essa gente é toda igual... O que interessa a uns interessa aos outros, e a todos interessa que a gente viva assim...
      Uma voz - A Polícia!
    (O grupo dispersa com rapidez enquanto pela esquerda do palco entram dois Polícias que se aproximam de Vicente. Este, de cima do caixote, continua a gritar: “Fujam! Fujam! A Polícia!” até à dispersão total do grupo. Durante a fuga dos populares a luz do fundo vai diminuindo de intensidade até desaparecer completamente. Os Polícias aproximam-se de Vicente, que desce do caixote e acamarada com eles. Ficam os três iluminados, no palco.) 
      Vicente - Há muito que os não vejo. Que é feito?
      1º Polícia - Sempre a mesma coisa: rondas, feiras, serviço à porta deste ou daquele... sei lá. E tu?
      Vicente - Cá vou, discutindo o general, de manhã, à tarde e à noite... Para esta cambada, o Freire é Deus.  
      Fala com certa tristeza. 
      (Senta-se, descalça o sapato e começa a consertá-lo) 
      Se não lhe tratamos da saúde, talvez nos trate da nossa...
      2º Polícia (Apanhando uma boneca esfarrapada de que uma se esqueceu ao fugir) 
      Olha lá, Vicente: consegues tu inspirar a fiança desta gente?
     Vicente - É simples: digo-lhes metade da verdade. Sou com o Gomes Feire? Lembro-lhes que o Gomes Freire é general e falo-lhes guerra. Haverá alguém que se não lembre de guerra? A vida tem sido uma guerra atrás de outra... Odeiam Franceses e os Ingleses? Chamo estrangeirado Gomes Freire... O que não lhes digo é se ele não fosse estrangeirado era... era como outros... era mais um senhor do Rossio...
       2º Polícia - E tu acreditas nele?
      Vicente - Não. Só acredito em duas coisas: no dinheiro e na força. O general não tem uma nem outra.
      Nitidamente embaraçado. 
      1º Polícia - É por isso, então, que...
      (Os outros olham-no de frente) 
      Que... pois...
      2º Polícia - Vá: acaba o que estás a dizer. O tempo passa e viemos aqui em serviço.
      1º Polícia - Eu não ia dizer nada...
     Vicente (Calça o sapato e levanta-se) - Ias, ias. Ias perguntar-me se foi por dinheiro que eu me virei contra os meus...
      Fala como um alucinado, com frequentes pausas, que dão a entender não ser esta a primeira vez que pensa no assunto. 
       Ao falar da cara, levanta-se, assumindo a posição dum senador romano. 
      Era ou não era isso que me ias perguntar?
      1º Polícia - Na verdade...
      Vicente - Pois respondo-te, amigo. Respondo-te de boa vontade.
      (Começa a passear em frente dos Polícias) 
     É verdade que nasci aqui e que a fome desta gente é a minha fome, mas... é igualmente verdade que os odeio, que sempre que olho para eles me vejo a mim próprio: sujo, esfomeado, condenado à miséria por acidente de nascimento.
      (Estaca no palco e toma uma posição de pessoa importante, de fidalgo retratado por um artista medíocre do paço) 
      Que diferença há entre mim e um fidalgo qualquer? Será que tenho uma cara diferente? Será que sou mais estúpido? Mais baixo? Mais alto? Serão as minhas pernas e os meus braços diferentes das pernas e dos braços dum desses fidalgotes das touradas?
      Alarga os passos. Todos os seus gestos são estudados. Sente-se que passou longas horas estudando os hábitos e os maneirismos dos membros da classe a que desejaria ter pertencido. Ao falar, faz gestos com as mãos, gestos lentos, precisos, copiados dum fidalgo qualquer que teve ocasião de observar de perto. 
      De repente olha para os Polícias e compreende que está a dizer coisas que não deveria ter dito. Fecha as mãos. Domina-se. Adopta um tom de voz ironicamente piedoso. 
      Não, meus amigos. A única coisa que me distingue dum fidalgo é uma coisa que se passou há muitos anos e de que nem sequer tive a culpa: o meu nascimento.
      (Pausa) 
     Nasci a dois passos daqui, numa trapeira em que nenhum fidalgo entraria. Quando passo lá à porta, só Deus sabe o que sinto... 
      É por isso que odeio esta cambada a que pertenço, mas a que pertenço sem querer e com quem não tenho nada de comum! 
       Mas vocês não podem perceber isto...
      (Cai em si) 
     Tenho estado a brincar, amigos. Querem saber porque vendo os meus irmãos? Pois vendo-os por amor a N. S. Jesus Cristo e a el-rei D. João VI, que há tantos anos anda pelos Brasis cuidando dos nossos interesses.
      Sarcástico. 
      O sarcasmo é triste. 
      (Ri-se.) 
      1º Polícia - Pareces um doutor a falar...
      2º Polícia - É tempo de lhe dizermos ao que vimos. Está a fazer-se tarde...
      (O primeiro Polícia avança e põe-lhe a mão sobre o ombro.) 
      1º Polícia - Temos notícias para ti, amigo...
      Vicente - Costumo ser eu a ter notícias para vocês...
      1º Polícia - Andámos toda a tarde à tua procura.
      Vicente - À minha procura.
     1º Polícia - À tua procura, sim, homem de Deus. És mais importante do que pensas. Temos ordens de te levar, ainda hoje, à presença...
      (Ri-se)
      Adivinha de quem...
      Vicente - O tenente quer falar comigo.
      1º Polícia (Rindo-se) - Não é o tenente, homem. pessoa mais grada.
      Vicente - O intendente?
      2º Polícia - Upa! Upa!
      Vicente - O próprio...?
      1º Polícia - Tanto também não! Vais falar com um governador do Reino: O Sr. D. Miguel Pereira Forjaz. Chega-te?
     Encolhe os ombros, exprimindo a impossibilidade de se compreenderem os desígnios e as intenções dos poderosos. 
      Vicente - Um governador do Reino! Que me quer ele?
      2º Polícia - Sei lá...
      1º Polícia - Pode querer incumbir-te de uma missão especial...
      2º Polícia - Ou querer fazer-te nosso chefe...
      1º Polícia (Rindo-se) - Ou dar-te uma comenda.
      (Vicente afasta-se dos Polícias. Caminha para a esquerda do palco e detém-se. Fala sozinho.) 
      Vicente - Cheira-me a coisa graúda... Se eu souber fazer render o peixe, sou capaz de acabar com uma capela... ou chefe de Polícia, quem sabe? 
      Eu, chefe de Polícia! Estou a ver a cara do povo... Antes uma capela: carruagem, criado de libré... o povo a vir bater-me à porta:
       (Num tom de voz humilde) 
      Meu senhor: não temos pão em casa... Dê-nos uma esmolinha por alma de quem lá tem... Não se esqueça de que também já teve de mendigar...
      (Voltando ao tom de voz habitual) 
      E eu lá lhes vou dando umas moedas, por caridade...
      (vira-se para os Polícias, em tom galhofeiro) 
      Gostavam de me ter como chefe?
      1º Polícia - Não queríamos outra vida... Nunca te havias de esquecer de que tínhamos sido nós os portadores da boa nova...
       (Sorriem maliciosamente, sugerindo que seriam privilegiados se o facto acontecesse.) 
      Vicente (Rindo-se com desprezo) - Ah! ah! ah!
     Os degraus da vida são logo esquecidos por quem sobe a escada... Pobre de quem lembre ao poderoso a sua origem... Do alto do poder, tudo o que ficou para trás é vago e nebuloso.
     No Olimpo designam-se por pastores desencaminhados os que têm a ousadia de lembrar as promessas do passado ou de evocar o início da ascensão...
      (Rindo-se) 
     Ainda há pouco vocês diziam que eu atraiçoara os meus... Nunca se fala de traição a quem sobe na vida... 
      Quem sobe, amigos, larga os homens e aproxima-se de Deus! Passa a ser julgado por outras leis...     
        Então vocês julgam que, se eu fosse chefe de Polícia, os queria debaixo das minhas ordens? 
      A vocês, que sabem como eu comecei?
      (Ri-se) 
     Vá! Vamos embora. Não convém que o Sr. Governador tenha de esperar por quem o serve com tanta dedicação...
      D. Miguel - Fidalgos?
      Fingindo-se incrédulo. 
    Vicente - Fidalgos, Excelência! De muitos poderia eu contar coisas de espantar. É certo que só poderia falar dos que andaram lá por fora. As Franças deram a volta a muita cabeça... Hoje são mais os estrangeirados do que os Portugueses...
      (Fala com segurança e a convicção de quem sabe que agrada ao papa e aos que se mostrem ainda mais papistas do que ele.) 
      (Cospe com repugnância.) 
      D. Miguel - Que sabe você do meu primo?
      Vicente (Espantado) - Do primo de Vª Excelência?
     O espanto de Vicente pode revestir a forma dum olhar interrogador para os dois Polícias que o ladeiam.
      D. Miguel - Falo do general Gomes Freire d'Andrade.
      Fixa atentamente D. Miguel porque não tem a certeza de estar a agradar. A meio da frase faz uma pausa para estudar a reacção do governador, e recomeça. 
      Francamente adulador. 
     Vicente começa a compreender que se enganou ao gabar Gomes Freire, mas ainda não sabe que caminho há-de tomar. 
      Vicente - Sou um homem do povo, Excelência... Tenho o general Gomes Freire na conta em que o tem o povo.
       D. Miguel - E em que conta o tem o povo?
      Vicente - Excelência: Se pusermos de parte a pessoa d'el-rei e a vossa, a ninguém tem o povo mais amor do que ao primo de Vª Excelência. Soldado distinto, súbdito fiel... Em ninguém põe o povo mais esperança do que no general...
       D. Miguel - Esperança de quê?
      Vicente (Depois de examinar o governador com atenção) - Excelência: fala-se de... fala-se de... Vª Ex.a não pode ignorar que se fala de revolução.
      D. Miguel - E liga-se o nome de meu primo a essa revolução?
      (Com esperança) 
      Vicente - O povo fala...
      Como quem pede desculpa.
      D. Miguel - O povo fala... E que interessa o que diz o povo?
      Com escárnio. 
    Vicente - Há quem diga que a voz do povo é a voz de Deus... Mas também há quem diga o contrário!
       Bem vistas as coisas, que pode a voz do povo contra a voz d'el-rei? 
      Uma voz (Vinda de fora do palco e aumentando de intensidade à medida que o principal Sousa se aproxima dos presentes) - Diz o «Eclesiastes» que, tendo Deus dividido o género humano em várias nações, a cada uma delas deu um príncipe que a governasse...
      (O principal Sousa surge no palco, imponentemente vestido)
      É de origem divina o poder dos reis e é portanto a sua – e não a do povo - a voz de Deus.
     Vicente (Com humildade) - O povo, Reverência, não leu o «Eclesiastes» e pouco se preocupa com a origem do poder. Interessa-lhe mais o preço do pão... Talvez, se o ensinassem a ler, tomasse conhecimento do «Eclesiastes»...
      Principal Sousa - E talvez não, meu filho: a sabedoria é tão perigosa como a ignorância! Ambas podem afastar o homem de Deus e dos seus caminhos.
      Sei bem como a palavra «liberdade», na boca dos demagogos, se torna aliciante e admito, até, que o soberano, por vezes, tenha ido contra a lei estabelecida, mas esta interrupção duma lei particular é justificada pela lei geral, que lhe confia todo o poder necessário para a salvação do Estado... Compreendes, meu filho?
      Fala com ironia, como um homem que, tendo sido aceite num clube de acesso difícil, se adapta imediatamente à linguagem dos sócios mais antigos.
      Vicente - Se compreendo, Reverência! À medida que vou envelhecendo, a minha capacidade de compreensão torna-se cada vez maior...
      D. Miguel (Para o principal Sousa) - De toda a parte me vêm relatórios inquietantes, Reverência. O povo fala abertamente em revolução... Nas loj as de bebidas, murmura-se o nome de Gomes Freire...
        Vicente - No Cais do Sodré há um café, Excelência, onde se reúnem todos os dias os defensores do sistema das cortes...
       D. Miguel - A revolta de Pernambuco incendiou as almas.
      Principal Sousa - Há que apagar o fogo perseguindo os insensatos, Sr. Governador. Se o poder é de origem divina, os que contra ele se batem, a si mesmos trazem a condenação, como São Paulo inculcou aos Romanos...
         Estende o braço num gesto que, não sendo o da bênção, deve, todavia, sugeri-lo. 
      D. Miguel (Para Vicente) - Tenho uma missão para si. Quero que se torne conhecido para os lados do Rato e que veja quem entra em casa de meu primo. Quero que me venha aqui trazer, todas as manhãs, uma lista das pessoas com quem o general se dá. Uma lista a que não falte ninguém. Se cumprir esta missão com o zelo que lhe impõe o seu dever e a gravidade da situação, prometo-lhe que não acabará os seus dias a pedir. Interessa-lhe a chefia dum posto de Polícia?
      Vicente - Só me interessa, Excelência, a oportunidade de servir el-rei e a Pátria. Nada mais me interessa. Agora – ou mais tarde, como chefe de Polícia - é o que farei...
        (Vicente faz uma vénia.) 
     Principal Sousa - Vá, meu filho, e ajude-nos a cuidar do rebanho, indicando-nos as ovelhas tresmalhadas antes que elas contagiem as restantes. 
       Que Deus o proteja na sua missão.
       (Vicente faz outra vénia e, ladeado pelos dois Polícias, avança para o centro do palco enquanto a luz do fundo se apaga.) 
      Vicente (Rindo-se) - E falavam vocês de traição...
       (Ri-se mais) 
      Como vêem, não se trata de traição, mas, antes pelo contrário, de zelo e dedicação pela causa da Pátria e d'el-rei...
       (Rindo-se mais ainda) - Até Deus está comigo, não ouviram? Diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és...
      1º Polícia (Irónico) - Referes-te a Deus ou a ti?
     (Vicente ri. Saem os três pela esquerda, enquanto o principal Sousa e D. Miguel Em tom de confidência. Fala como um homem desiludido que, depois de ter dado o melhor do seu trabalho, se vê incompreendido e desacreditado. Avançam até se encontrarem ao centro e à frente do palco. Vêm falando.) 
     Principal Sousa - Se a um ministro de Deus é permitido odiar, que o Senhor, um dia, perdoe o ódio que tenho aos Franceses...
      Veja, Sr. D. Miguel, como eles transformaram esta terra de gente pobre mas feliz num antro de revoltados! Por essas aldeias fora é cada vez maior o número dos que só pensam em aprender a ler... Dizem-me que se fala abertamente em guilhotinas e que o povo canta pelas ruas canções subversivas.
     D. Miguel - A Polícia não chega para arrancar os pasquins revolucionários das portas das igrejas... O mundo parece estar atacado de loucura, Reverência...
     Principal Sousa - Maior é, por isso mesmo, a nossa responsabilidade. Esta noite sonhei que nós, os governadores do Reino, tínhamos sido destacados, pelo Senhor, para a primeira linha do combate eterno entre o bem e o mal. Temos uma missão a cumprir, uma missão sagrada e penosa: a de conservar no jardim do Senhor este pequeno canteiro português. Enquanto a Europa se desfaz, o nosso povo tem de continuar a ver, no Céu, a Cruz de Ourique.
      D. Miguel - Se a Europa nos desse ouvidos...
     Beresford (Avançando do fundo do palco e falando) – A Europa... A Europa... Deixai-a, que ela nem se perde nem carece dos vossos conselhos.
      (Cumprimenta os dois) 
      Excelências: não vim aqui para perder tempo em conversas filosóficas. Venho falar-lhes de coisas mais sérias.
      Aponta para o tecto. 
    Beresford vem fardado. A farda, ainda que regulamentar, não é espaventosa e está um pouco usada. 
       O principal não gosta de Beresford e fala-lhe sem sorrir. 
      Principal Sousa - O marechal Beresford sabe de alguma coisa mais séria do que a conservação do reino do Senhor?
     Beresford (Encolhendo os ombros) - Poupe-me os seus sermões, Reverência. Hoje não é domingo e o meu Senhor não é vassalo de Roma.
      (Beresford fala como quem fala a uma criança.) 
     Principal Sousa (Para D. Miguel) - O reino de Deus está a saque e os inimigos do Senhor já se não encontram apenas na rua... Há-os nos palácios e no próprio Conselho da Regência. Ao que o mundo chegou, para que me veja obrigado a aceitar o auxílio dum herege a fim de combater outros hereges...
      Fala para D. Miguel, mas vê-se que se refere a Beresford, para quem olha ao falar no Conselho da Regência. 
     Beresford - Senhores: Deixemos o reino de Deus para outra ocasião. O que me traz aqui é bem mais grave. 
       Enquanto estamos a conversar - neste mesmo momento - conjura-se abertamente em Lisboa.
     Dentro de minutos vem aqui um oficial repetir a V.as Ex.as o que me disse ontem, à noite, em minha casa.
       Oiçam bem o que ele diz, porque, da decisão que tomarmos, depende a cabeça de Vª Ex.a, Sr. D. Miguel, os meus 16 000,00 anuais e a possibilidade de o principal Sousa continuar a interferir nos negócios deste Reino.
      D. Miguel - Querem matar-me?
      Não há receio nem ironia na voz de D. Miguel... 
   Beresford - Talvez não o queiram, mas têm de o fazer. Quando se carrega no gatilho duma espingarda, a bala tem necessariamente de sair, ainda que se tape a boca do cano com a mão, ou que ali o Sr. Governador reze três terços para a reter.
      (Beresford é um homem prático, que encara objectivamente a realidade. O seu tom de voz está de acordo com a sua maneira de ser.) 
      D. Miguel (Falando sozinho)- Sempre a Revolução Francesa...
       (Para os dois) 
      Temos de a impedir seja como for.
    Temos de a impedir com tal brutalidade que ninguém volte a conjurar neste Reino... Se o não fizermos, se tivermos piedade, ou escrúpulos, mais tarde ou mais cedo voltaremos ao mesmo.
      Beresford - Conheço o nome de alguns dos conspiradores, mas não sei quem seja o chefe...
    Principal Sousa - O nome do chefe é o que menos interessa. Ninguém se lembra do nome do tocador de trombeta que fez abater os muros de Jericó. mas Jericó caiu...
      D. Miguel (Para Beresford) - Quem é o oficial que nos anunciou?
     Beresford - Um tal Andrade Corvo de Camões. Mau oficial, ignorante, e julgo, até, que pedreiro-livre.
      Beresford fala com desprezo. 
      Principal Sousa - Mas dedicado, ao que parece.
     Beresford - Dedicado à sua própria causa, como todos os da sua laia... Pretende ser promovido pela denúncia, já que o não pode ser por mérito. 
       (Sorri) 
     Aquilo a que se chama aqui um bom rapaz: bem vestido, amigo dos prazeres e com tão poucos conhecimentos que, se el-rei voltasse do Brasil, bem o poderia fazer moço do paço...
      D. Miguel (Para Beresford) - Ainda há pouco saiu daqui um homem que confirmou tudo o que Vª Ex.a diz... Um tal Vicente...
      Beresford (Rindo-se) - Dois denunciantes: um Corvo e um Vicente. São as armas da cidade...
      A palavra «patriota» é proferida com ironia. 
     Corvo - Excelências: trago comigo um patriota que pode testemunhar o que ontem contei ao Sr. Marechal.
    D. Miguel (Rindo-se) - Os «patriotas» raras vezes andam sozinhos... Defendem-se sempre, andando em grupo, tal é o conhecimento que têm de si mesmos... Diga-me, Sr. Capitão, como se chama o «patriota» seu amigo?
      Corvo - Pedro Pinto de Morais Sarmento, capitão.
    Beresford - E quem lhe disse que eu necessitava de testemunhas para crer no que ontem me contou?
       Corvo - Dois depoimentos valem mais do que um só.
     D. Miguel (Para os governadores) - Os «patriotas» acabam sempre por julgar os outros pelo conceito que de si próprios têm... Quando querem crédito para o que dizem, avançam sempre de prova em punho e testemunha ao lado...
       (Para o capitão) 
      Dois depoimentos valem então mais do que um só? Isso não será, Senhor Capitão, a apologia do sistema das cortes?
     Corvo - Excelência: referia-me a depoimentos de gente comum. É evidente que um só depoimento de qualidade anula todos os restantes...
        Principal Sousa - E só el-rei tem essa qualidade e só o Salvador a pode conferir...
       D. Miguel - O seu nome não me é estranho. Alguém me disse que o Sr. Capitão exerceu grande actividade numa loja maçónica designada pelo nome de «Virtude»... à Rua de São Bento.
        Corvo - Nunca ocultei que, na verdade, andei perdido...
       D. Miguel - Tem agora ocasião para nos mostrar que já o não anda. El-rei é generoso para com os seus súbditos dedicados, mas é implacável para com quem se perde pelos caminhos... 
        Conte-nos o que sabe.
      Corvo - Senhor: há dois dias o meu amigo Morais Sarmento entrou no botequim do Marrare e encontrou um tal Calheiros, que lhe mostrou uma proclamação contra o rei, o Sr. Marechal e os empregados públicos...
      Principal Sousa - Essa proclamação referia-se à Igreja, meu filho?
      Morais Sarmento - Não, Reverência, não vi qualquer...
      Corvo - Mas referia-se a Vª Exª, como governador que é do Reino...
      Beresford (Para os governadores) - Infelizmente não lhe foi possível obter a proclamação...
      D. Miguel - Que é preciso obter a todo o custo. Que mais soube, capitão?
      Corvo - Que se trama uma conspiração, Excelência.
      D. Miguel - E quem a dirige? Corvo - Não sei, Excelência.
     Beresford (Para os governadores) - Só o poderemos saber através destes dois... «patriotas». Creio que teremos de lhes pedir que nos obtenham a proclamação...
     D. Miguel (Para os capitães) - Não lhes quero ocultar o que sei a vosso respeito. Tanto o Sr. Capitão Corvo como o Sr. Capitão Morais Sarmento pertencem à Maçonaria e ambos estão, portanto, numa situação delicada.
       (Levanta-se e passeia dum lado para o outro) 
      Para readquirirem a confiança da Regência, têm de a servir com o mesmo zelo com que serviram as suas lojas. Certamente lhes não será difícil fazê-lo... principalmente se souberem que os aguarda não só a confiança d'el-rei como algo de mais substancial...
       (Volta a sentar-se.) 
       Beresford - Tragam-nos a proclamação... obtenham-na seja como for...
     Corvo - O Calheiros é de Santarém, Excelência. Conheço um amigo dele, um tal João de Sá Pereira, que bem manejado, talvez consiga...
       O tom é trocista. Beresford não perde ocasião de provocar o principal. 
     Principal Sousa - Os pormenores, Sr. Capitão, são consigo. Não me interessa saber como são castigados os inimigos do Senhor mas, apenas, que o são.
       Beresford - Não percam tempo, senhores. O momento é grave e a causa justa. Vão.
       (Corvo e Morais Sarmento saem pela esquerda do palco.) 
      Beresford (Para o principal Sousa) - Não se pode dizer, Reverência, que para esta seara os braços sejam poucos...
      Principal Sousa - Ainda há portugueses honrados nos tempos que correm...
      Beresford (Rindo-se) - Atrás de nós... 
    Catalogando-o de humorista, finge não compreender a ironia dos seus comentários e assim se justifica junto dos outros, por não lhe responder. 
       Principal Sousa (Que não compreendeu o marechal) - Atrás de nós?
      Beresford - Limitei-me a completar a sua frase, Reverência. Espero que não tenha ilusões acerca da revolta que se trama! E o tempo, Reverência, o tempo que corre atrás de nós. O velho está sempre a ceder perante o novo e o novo sempre a destruir o velho...
       Principal Sousa - Trama-se contra el-rei, e Vª Exª brinca!
    Beresford (Rindo-se) - Não brinco, Reverência, não brinco... Dentre nós, só Vª Reverência brinca... e com o fogo!
       Principal Sousa - Fala de tal forma que ninguém o entende.
       Beresford - Preferia, certamente, que me exprimisse em latim?
      D. Miguel (Com autoridade) - Senhores! A paz deste Reino e a missão que el-rei nos confiou não permitem que percamos tempo em conversas fúteis. Trama-se uma conjura destinada a atacar a própria estrutura da sociedade em que vivemos. Se não tomarmos as necessárias precauções, dentro em breve teremos a desordem nas ruas e a anarquia nas almas!
      Beresford - E não estaremos cá para assistir ao espectáculo...
      Principal Sousa - Deus Nosso Senhor não permitirá que se destrua a Sua autoridade!
      Beresford (Rindo-se) - Como a vida num país pequeno acaba por atrofiar as almas!...
      O tom do marechal é sempre jocoso.
     Diga-me, Reverência, onde estava Deus Nosso Senhor, em 1793, quando os Franceses cortaram a cabeça ao representante da Sua autoridade?
      Principal Sousa - Excelência! Vai longe de mais nos seus gracejos!
    Beresford - Neste Conselho só eu me posso dar ao luxo de gracejar! Se a autoridade de Deus Nosso Senhor for discutida, Vossas Excelências, como representantes que são dessa autoridade, seguirão o destino que ela tiver... mas eu – um simples técnico estrangeiro - serei devolvido à procedência... voltarei à minha terra, onde os hereges, Reverência, regulamentaram a autoridade do Senhor a tempo de evitar a guilhotina.
       (Levanta-se e encaminha-se para a esquerda do palco) 
       Como vê, Reverência, sou o único dos presentes que se pode dar ao luxo de gracejar...
      Através da janela, Beresford contempla uma paisagem portuguesa e descreve as belezas naturais da sua terra. Esta situação é, em si mesma, uma crítica a Portugal, que ele, como se depreende, despreza. 
       Fala lentamente. Está a lembrar-se. 
       (Olhando para a rua, duma janela)
      Está um lindo dia! Na minha terra, quando apanhamos um dia assim, saímos a cavalo. Os prados são tão verdes, Excelências, que os olhos acabam por se cansar. E as árvores... quem não viu as árvores da minha terra, nunca viu árvores...
      D. Miguel - Também aqui se pode sair a cavalo...
     Beresford - Sim, também aqui se pode sair a cavalo, mas os prados são secos, Excelência, e as árvores tão entisicadas que parecem ter sido todas plantadas pelo principal Sousa...
     Principal Sousa (Com fúria) - Então porque se não vai embora? Porque não regressa aos seus prados e às suas árvores?
      Beresford - Porque não tenciono regressar sem ter assegurado um futuro que me compense dos sacrifícios do presente, Excelência. Sou duma terra onde as leis são humanas, as pessoas cultas e a vida cheia de sentido... Sou duma terra onde um homem vive como um homem...
      (Pausa)
      E estou aqui, entre vós, discutindo filosofias mortas e preparando execuções!
      (Encolhe os ombros e vira-se para os restantes governadores)
     Que me dais, senhores, para me compensar de tudo o que fui forçado a abandonar para os servir? Honras? E quem mas presta? O vosso exército pindérico? Os vossos doutores em Teologia?
      (Ri-se)
     Títulos? Mas quem é o marquês de Campo Maior fora do botequim do Marrare?
      (Ri-se)
    Não, Excelência, não! Pretendo uma única coisa de vós: que me pagueis - e Encolhe os ombros num gesto de desprezo. Bem! Tão bem que, ao voltar à minha terra, possa olhar para trás sem lamentar os anos que por cá perdi.
     Estou aqui pelos mesmos motivos que vos levam a viver durante anos nas florestas do Brasil e, por isso mesmo, sou o mais fiel e o mais dedicado dos vassalos deste Reino. Preciso acreditar no poder divino d'el-rei? Cá está o marechal Beresford para acreditar no poder divino d'el-rei. Preciso assistir ao Te Deum do principal Sousa? Cá está o marechal Beresford, marquês de Campo Maior, para assistir a todos os Te Deum a que seja necessário assistir, desde que lhe paguem, ao fim do ano, a quantia que um dia lhe permitirá, na sua terra, viver como gentleman!
      D. Miguel - Um mercenário!
     Beresford (Rindo-se) - Troco os meus serviços por dinheiro, Excelência. Há quem os troque por uns anos no poder, e há quem os troque por outras coisas. Haveis de compreender, senhores, que esta não é a minha pátria e que não é por patriotismo que vos estou reorganizando o exército. Mas... deixemo-nos de conversas inúteis! Não interessa, agora, saber o que leva cada um de nós a actuar desta ou daquela maneira. O que interessa é saber qual a melhor forma de sufocar a revolta que se prepara.
       (Sorri) 
      Senhores, afirmo-vos, em nome dos meus 16.000$00 anuais, que farei tudo o que for necessário para os continuar a receber!
        D. Miguel - Conto consigo, Excelência!
      Principal Sousa - Não lhe oculto que não gosto de si, Sr. Marechal, mas sei que no momento presente preciso do seu auxílio.
       (Para D. Miguel) 
       Quem será, Sr. Governador, o chefe da conjura?
     O principal Sousa, que só no segundo acto se revela inteiramente, apenas pretende salvar a sua consciência, isto é, apenas deseja ser convencido, pelos outros, da necessidade de tomar as medidas que, aliás, já está inteiramente decidido a tomar.
       D. Miguel (Rindo-se) - Que importa? Essa pergunta, Reverência, não é digna dum estadista. Que um irresponsável queira saber quem é o chefe duma conspiração, entende-se, mas que um estadista também o queira, já não.
     Perante uma conjura, o estadista esfrega as mãos, Reverência, e agradece ao Senhor a oportunidade de aniquilar alguns inimigos de Deus e do Estado.
        (Levanta-se) 
       A pergunta é: quem deverá, ou convirá, que tenha sido o chefe da revolta?
       Principal Sousa - E condena-se um inocente?
       D. Miguel - Não há inocentes, Reverência. Em política, quem não é por nós, é contra nós.
       (Entra Vicente pela esquerda do palco.) 
    Vicente - Senhores! Senhores! Ontem à noite entraram mais de dez pessoas em casa de... D. Miguel - Cuidado!
     Vicente (Atrapalhado. Olhando à sua volta) - Entraram mais de dez pessoas na casa que fui incumbido de vigiar... D. Miguel - Conhece-lhes os nomes?
       Vicente - Só de sete, senhor.
       D. Miguel (Para Vicente) - Está bem. Continue. 
      (D. Miguel, depois de Vicente ter saído pela esquerda do palco, prossegue, para os governadores)
     A ingenuidade do principal Sousa não é verdadeira. Este prelado defende-se, sempre, tentando mostrar-se alheio à política e às decisões em que intervém.
    A questão que temos de resolver, Excelência, é, portanto, bem simples. Consiste apenas em chegarmos a acordo acerca da pessoa que mais nos convém que tenha sido o chefe da conjura.
      Principal Sousa - Não me agrada a condenação dum inocente.
      Beresford - Está nas suas mãos, Reverência, evitar que seja condenado um inocente...
      Principal Sousa - Como?
      Beresford (Sorrindo) - Nomeando quem tenha na alma a semente do jacobinismo...
     Se peca quem não acata a palavra de Deus, mais peca, com certeza, quem não aceite ou discuta a Sua autoridade... V. Reverência ainda há pouco disse que a autoridade dos reis provinha de Deus...
      Principal Sousa - Na verdade...
    Beresford (Rindo-se) - Até os mercenários sabem teologia... São eles, aliás, que mais vezes carecem dela. A consciência humana, Reverência, satisf az-se com meia dúzia de artifícios mentais.
      Principal Sousa - Lá está Vª Exª brincando outra vez!
      (Pausa) 
      Digam-me: já pensaram em alguém?
      D. Miguel - O problema é delicado.
     Beresford (Levanta-se e passeia dum lado para o outro do palco) - A minha missão consiste em reorganizar o exército e é meu inimigo, portanto, quem me dificulte esta missão.
       Beresford fala só. 
     (A luz que incide sobre D. Miguel e o principal Sousa começa a diminuir de intensidade até desaparecer, ficando apenas Beresford iluminado)
     É também, meu inimigo quem me possa substituir na organização do exército... ou lá se vão os meus 16.000$00. Dizem que eu sou um grande sargento e um mau oficial, que sei organizar um exército, mas que não o sei comandar em campanha. 
      Basta que surja um oficial com um passado brilhante para me destronar... 
      Não devo esquecer-me de que estou rodeado de inimigos: o clero odeia-me porque não sou da sua seita; a nobreza, porque lhe não concedo privilégios; o povo, porque me identifica com a nobreza, e todos, sem excepção, porque sou estrangeiro... 
      O próprio D. Miguel só vê em mim uma limitação ao seu poder... 
     Neste país de intrigas e de traições, só se entendem uns com os outros para destruir um inimigo comum e eu posso transformar-me nesse inimigo comum, se não tiver cuidado. 
      Estaca. A última frase é proferida no tom de quem já pensou no assunto.
     Não é prudente ainda dizê-lo aos outros, mas não há dúvida de que existe um português capaz de me destronar...
       (Pausa) 
       (Fala agora para D. Miguel e o principal Sousa, que surgem subitamente iluminados) 
     Senhores, temos de encontrar alguém que tenha prestígio no exército. Julgo que nos convém um oficial de patente elevada, com um bom passado militar. Concretamente, porém, não sei de ninguém que lhes possa indicar.
      (Senta-se e, pela direita do palco, entra Andrade Corvo empuado.) 
      Corvo - Excelências: Já partiram para a província emissários dos conjurados e sei que é elevado o número de pessoas envolvidas na conspiração.
      Cá ando, sempre fiel a el-rei, na missão de que me incumbiram...
      (Sai pela esquerda do palco.) 
    Principal Sousa - Mas, Srs. Governadores, sem provas, sem nada com que demonstremos a culpabilidade do réu, onde encontraremos oficiais que o prendam e juízes que o condenem?
      D. Miguel - Nada há de mais fácil, Reverência. Para o público não compreender o que se passa, o julgamento será secreto, e para evitar o perdão de el-rei, a execução seguir-se-á imediatamente à sentença.
      Principal Sousa - E quanto a juízes?
    D. Miguel - Reverência: as provas judiciais pertencem ao domínio da razão e, se não pudermos condenar nesse domínio, faremos com que o julgamento decorra no outro, o da emoção, já que a emoção, Reverência, nem carece de provas, nem se apoia na razão.
     Principal Sousa - E a quem recorreremos?
     D. Miguel - A «patriotas», Reverência. Há-os sempre prontos a condenar o que não entendem e a classificar de racionais os seus estados emotivos. Os estadistas recorrem a tal gente sempre que a mais nada podem recorrer...
     Principal Sousa - Mas... prestar-se-ão a isso?
     D. Miguel - A tudo, Reverência, a tudo! Aliás, os seus serviços não serão gratuitos... Para o juiz da Inconfidência irão os bens do condenado... Para os restantes, Reverência, comendas e promoções... El-rei é generoso!
      Zombeteiro.
    Beresford - Verá, Reverência, que também não faltarão braços para esta seara basta prometer melhoria de rancho a todos os que colaborarem...
      Principal Sousa - Não seria preferível meter todos os conspiradores numa fragata, e mandá-los...
      (Entra pela direita do palco Morais Sarmento, que interrompe o Principal.)
     Morais Sarmento - Excelências: a conspiração destina-se a implantar neste Reino o sistema das cortes!
     D. Miguel (Depois dum momento de espanto) - Aqui tem, Reverência, a resposta à sua pergunta. Não! Não e não! Meter essa gente numa fragata seria dar a tudo um ar de violência e de injustiça que só serviria os projectos dos seus aderentes. preciso acabar de vez com esta gangrena. Já pensou em alguém, Reverência, que a Deus e ao Estado convenha liquidar?
     Principal Sousa - São muitos os inimigos do Senhor, nos dias que vão correndo. Fala-se de Deus com ironia e da sua Igreja como se de letra morta se tratasse...
     Os piores, Srs. Governadores, são os pedreiros-livres... Ninguém mais do que eles contribui para o alastramento da gangrena. Quem será o chefe da Maçonaria?
      (Entra Vicente pela esquerda do palco.)
    Vicente - Grande número de conspiradores são oficiais, mas há muitos civis que aguardam a revolta com entusiasmo...
      (Entra Corvo pela direita do palco.)
    Corvo - No estado em que se encontra o Reino, basta um grito na rua para que as labaredas alastrem de norte a sul...
      Vicente - E para que o sangue corra nas ruas. De cada árvore farão uma forca, de cada cave uma prisão...
       Principal Sousa - Tenho medo...
       (Para D. Miguel) 
      Senhor Governador, tenho medo. Há dois dias que quase não durmo e mesmo, quando passo pelo sono, perseguem-me imagens terríveis: imagino-me réu perante um tribunal que me não respeita.
     Dedos imundos tocam-me as vestes. Sonhei já três vezes que estava no Campo de Sant’Ana, subindo ao cadafalso, enquanto à minha volta os gritos do povo me não deixavam, sequer, ouvir a sentença...
      Beresford (Para Vicente e para Corvo) - Os chefes?! Quem são os chefes?
      Corvo - Fala-se deste e daquele, mas ninguém sabe ao certo.
    Beresford - Quero saber quem são os chefes. Comprem quem for preciso, vendam a alma ao diabo, mas tragam-nos os nomes dos chefes...
       (Corvo e Vicente saem.) 
     D. Miguel - Eu também tenho medo, senhores, mas o meu medo não é semelhante ao vosso. Pouco me importa a fortuna ou a vida, ambas daria de boa vontade, se me fosse necessário fazê-lo, pela minha terra. A Pátria, Excelências, não é, para mim, uma palavra vã... Se algum sonho tenho, se a um estadista é permitido sonhar, o meu sonho é de não morrer sem exterminar de vez as sementes da anarquia e do jacobinismo...
     Sonho com um Portugal próspero e feliz, com um povo simples, bom e confiante, que viva lavrando e defendendo a terra, com os olhos postos no Senhor. Sonho com uma nobreza orgulhosa, que, das suas casas, dirija esta terra privilegiada. Vejo um clero, uma nobreza e um povo conscientes da sua missão, integrados na estrutura tradicional do Reino... Não lhes nego, Excelências, que não sou um homem do meu tempo.
      Um mundo em que não se distinga, a olho nu, um prelado dum nobre, ou um nobre dum popular, não é mundo em que eu deseje viver.
      Não concebo a vida, Excelências, desde que o taberneiro da esquina possa discutir a opinião d'el-rei, nem me seria possível viver desde que a minha opinião valesse tanto como a de qualquer arruaceiro.
      Pergunto-vos, senhores: que crédito, que honras, que posições seriam as nossas, se ao povo fosse dado escolher os seus chefes?
     Beresford - Já que temos ocasião de crucificar alguém, que escolhamos a quem valha a pena crucificar... Pensou em alguém, Excelência?
      D. Miguel (Passeando agitadamente à frente do palco) – Sou um homem de gabinete. Não tenho as qualidades necessárias para falar ao povo...
       (Começa a apagar-se a luz que incide sobre Beresford e o Principal Sousa) 
     Repugna-me a acção, estaria politicamente liquidado se tivesse de discutir as minhas ordens... Não sou, e nunca serei, popular. Quem o for, é meu inimigo pessoal.
       (Pausa) 
     No estado em que se encontra o Reino, basta o aparecimento de alguém capaz de falar ao povo para inutilizar o trabalho de toda a minha vida... E há quem seja capaz de o fazer...
      (Entram Corvo e Vicente, respectivamente pela esquerda e pela direita do palco.) 
     Vicente - Excelências, todos falam num só homem...
     Corvo - Um só nome anda na boca de toda a gente.
     (Surge Morais Sarmento, que avança do fundo do palco.)
     Morais Sarmento - Senhores Governadores: onde quer que se conspire, só um nome vem à baila.
     Abre os braços no gesto dramático de quem faz uma revelação importante e inesperada. 
     Corvo - O nome do general Gomes Freire d'Andrade!
     (Acende-se a luz que ilumina Beresford e o Principal Sousa.) 
     Começam a ouvir-se tambores ao longe, muito em surdina. 
     D. Miguel - Senhores governadores: aí tendes o chefe da revolta.
    Notai que lhe não falta nada: é lúcido, é inteligente, é idolatrado pelo povo, é um soldado brilhante, é grão-mestre da Maçonaria e é, senhores, um estrangeirado...
     Beresford - Trata-se dum inimigo natural desta Regência.
     Principal Sousa - Foi Deus que nos indicou o seu nome.
     D. Miguel (Sorrindo) - Deus e eu, senhores! Deus e eu...
     Corvo - Mas, senhores, nada prova que o general seja o chefe da conjura. Tudo o que se diz pode não passar de um boato...
      D. Miguel - Cale-se! Onde está a sua dedicação a el-rei, capitão?
   Principal Sousa - Agora me lembro de que há anos, em Campo d'Ourique, Gomes Freire prejudicou muito a meu irmão Rodrigo!
      D. Miguel anda, no palco, dum lado para o outro, com passos decididos. 
      D. Miguel - Se eu fosse a falar do ódio que lhe tenho...
      Beresford - O marquês de Campo Maior também tem razões para odiar a Gomes Freire...
     D. Miguel - E, agora, meus senhores, ao trabalho! Para que o país não se levante em defesa dos conjurados há que prepará-lo previamente. Há gente, senhores, que sente grande ardor patriótico sempre que os seus interesses estão em perigo. Há que provocar esse ardor. Há que pôr os frades, por esse país fora, a bramar dos púlpitos contra os inimigos de Deus. Há que procurar em cada regimento um oficial que se preste a dizer aos soldados que a Pátria se encontra ameaçada pelos inimigos de dentro. Há que fazer tocar os tambores pelas ruas para se criar um ambiente de receio.
      Os estados emotivos, Srs. Governadores, dependem da música que se tem no ouvido. Para que se mantenham, é necessário que as bandas não parem de tocar.
      Quero os sinos das aldeias a tocar a rebate, os tambores, em fanfarra, nas paradas dos quartéis, os frades aos gritos nos púlpitos, uma bandeira na mão de cada aldeão!
       (Começa a entrar povo pela direita e pela esquerda do palco. Os tambores tocam, sem cessar)  
     Quero o país inteiro a cantar em coro. Lembrai-vos, senhores, de que uma pausa pode causar a ruína de todos os nossos projectos!
     (Entra pela direita do palco um púlpito a que o Principal Sousa sobe. Começa a ouvir-se um sino tocar a rebate.) 
      Principal Sousa (Do púlpito) - Meus filhos, meus filhos, a Pátria está em perigo! Os inimigos de Deus preparam na sombra, a ruína dos vossos lares, a violação das vossas filhas, a morte d'el-rei!
      Os tambores entram em fanfarra e o palco enche-se de soldados.
      D. Miguel - Portugueses: a hora não é para contemplações! Sacrifiquemos tudo, mesmo as nossas consciências, no altar da Pátria.
      Principal Sousa - Morte aos inimigos de Cristo!
      D. Miguel - Morte ao traidor Gomes Freire d'Andrade!
     (Apagam-se todas as luzes. As personagens ficam na penumbra agitando os braços e erguendo bandeiras no ar. Durante um espaço de tempo muito curto, ouvem-se os sinos e os tambores.) 
CAI O PANO.

Felizmente Há Luar!, Luís de Sttau Monteiro

Luís Infante de Lacerda de Sttau Monteiro (Lisboa, 3 de Abril de 1926 — Lisboa, 23 de Julho de 1993).

Texto dramático

Estrutura do texto dramático: 
Atos - divisão maior do texto dramático;
Cenas - divisão menor do texto dramático. 

Modalidades do discurso dramático:
O texto principal - as falas das personagens. É o texto verbalizado pelos atores durante o espetáculo. Pode concretizar-se sob a forma de monólogo, diálogo ou aparte.

O texto secundário - também designado por didascálias ou indicações cénicas, aparece geralmente entre parênteses e em itálico. Fornece indicações imprescindíveis para a peça ser representada da forma como o dramaturgo a idealizou, nomeadamente sobre o cenário, a caracterização das personagens, a entoação de voz, os gestos, movimentos e atitudes destas, entre outros.

UNO LITERÁRIO [ direitos de Autor ]

"UM PIANO NA MINHA RUA..." | Fernando Pessoa

"UM PIANO NA MINHA RUA..." Um piano na minha rua… Crianças a brincar… O sol de domingo e a sua... Alegria a doirar… A mágoa que me convida A amar todo o indefinido… Eu tive pouco na vida Mas dói-me tê-lo perdido. Mas já a vida vai alta Em muitas mudanças! Um piano que me falta E eu não ser as crianças! Fernando Pessoa, Poesias

"Ondados fios de ouro reluzente" - Luís de Camões

"Venere" - Sandro Botticelli "Ondados fios de ouro reluzente" Ondados fios de ouro reluzente, Que, agora da mão bela recolhidos, Agora sobre as rosas estendidos, Fazeis que a sua beleza se acrescente; Olhos, que vos moveis tão docemente, Em mil divinos raios encendidos, Se de cá me levais alma e sentidos, Que fora, se de vós não fora ausente? Honesto riso, que entre a mor fineza De perlas e corais nasce e parece, Se na alma em doces ecos não o ouvisse!... Se, imaginando só tanta beleza, De si em nova glória a alma se esquece, Que será quando a vir?... Ah! Quem a visse… Obras completas de Luís de Camões (1843, v. II)

O Ano da Morte de Ricardo Reis - José Saramago

O Ano da Morte de Ricardo Reis       Aqui o mar acaba e a terra principia. Chove sobre a cidade pálida, as águas do rio correm turvas de barro, há cheia nas lezírias. Um barco escuro sobe o fluxo soturno, é o Highland Brigade que vem atracar ao cais de Alcântara. O vapor é inglês, da Mala Real, usam-no para atravessar o Atlântico, entre Londres e Buenos Aires, com uma lançadeira nos caminhos do mar, para lá, para cá, escalando sempre os mesmos portos, La Plata, Montevideo, Santos, Rio de Janeiro, Pernambuco, Las Palmas, por esta ou inversa ordem, e, se não naufragar na viagem, ainda tocará em Vigo e Boulogne-sur-Mer, enfim entrará o Tamisa como agora vai entrando o Tejo, qual dos rios o maior, qual a aldeia. [...]    As crianças estrangeiras, a quem mais largamente dotou a natureza da virtude da curiosidade, querem saber o nome do lugar, e os pais informam-nas, ou declinam-no as amas, as nurses, as bonnes, as fräuleins, ou um marinheiro que passava para ir à manobra, Lisboa, Lis

"Amor fez a mim amar" - D. Dinis

"Amor fez a mim amar" Amor fez a mim amar gram temp'há unha molher que meu mal quis sempr' e quer, e me quis e quer matar; e bem o pod'acabar pois end'o poder houver. Mais Deus, que sab'a sobeja coita que m'ela dá, veja como vivo tam coitado; El mi ponha i recado. Tal molher mi fez Amor amar, que bem des entom nom mi deu se coita nom, e do mal sempr'o peior. Por end'a Nostro Senhor rogu'eu mui de coraçom que El m'ajud'em_a tam forte coita que par m'é de morte, e ao gram mal sobejo com que m'hoj'eu morrer vejo. A mim fez gram bem querer Amor ũa molher tal que sempre quis o meu mal e a que praz d'eu morrer. E, pois que o quer fazer, nom poss'eu fazer i al; mais Deus, que sab'o gram torto que mi tem, mi dê conorto a este mal sem mesura que tanto comigo dura. Amor fez a mim gram bem querer tal molher ond'hei sempre mal e haverei;

"Nascemos para Amar" - Barbosa du Bocage

"Nascemos para Amar" Nascemos para amar; a Humanidade  Vai, tarde ou cedo, aos laços da ternura.  Tu és doce atractivo, ó Formosura,  Que encanta, que seduz, que persuade.  Enleia-se por gosto a liberdade;  E depois que a paixão na alma se apura,  Alguns então lhe chamam desventura,  Chamam-lhe alguns então felicidade.  Qual se abisma nas lôbregas tristezas,  Qual em suaves júbilos discorre,  Com esperanças mil na ideia acesas.  Amor ou desfalece, ou pára, ou corre:  E, segundo as diversas naturezas,  Um porfia, este esquece, aquele morre.  Barbosa du Bocage, Sonetos

"Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades" - Luís de Camões

"Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades" Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, Muda-se o ser, muda-se a confiança:  Todo o mundo é composto de mudança,  Tomando sempre novas qualidades.  Continuamente vemos novidades,  Diferentes em tudo da esperança:  Do mal ficam as mágoas na lembrança,  E do bem (se algum houve) as saudades.  O tempo cobre o chão de verde manto,  Que já coberto foi de neve fria,  E em mim converte em choro o doce canto.  E afora este mudar-se cada dia,  Outra mudança faz de mor espanto,  Que não se muda já como soía.  Luís Vaz de Camões, Sonetos

Sermão de Santo António aos Peixes | Padre António Vieira

Foto © Ró Mar | Museu de Santo António | Lisboa Sermão de Santo António aos Peixes V Descendo ao particular, direi agora, peixes, o que tenho contra alguns de vós. E começando aqui pela nossa costa: no mesmo dia em que cheguei a ela, ouvindo os roncadores e vendo o seu tamanho, tanto me moveram o riso como a ira. É possível que sendo vós uns peixinhos tão pequenos, haveis de ser as roncas do mar?! Se, com uma linha de coser e um alfinete torcido, vos pode pescar um aleijado, porque haveis de roncar tanto? Mas por isso mesmo roncais. Dizei-me: o espadarte porque não ronca? Porque, ordinariamente, quem tem muita espada, tem pouca língua. Isto não é regra geral; mas é regra geral que Deus não quer roncadores e que tem particular cuidado de abater e humilhar aos que muito roncam. S. Pedro, a quem muito bem conheceram vossos antepassados, tinha tão boa espada, que ele só avançou contra um exército inteiro de soldados romanos; e se Cristo lha não mandara meter na bainha, eu vos p

PEREGRINAÇÃO - Fernão Mendes Pinto

Fernão Mendes Pinto (1510?-1583) nasceu em Montemor-o-Velho e faleceu em Almada. Pouco se sabe da vida real deste autor. Pensa-se que era um comerciante que negociava no Índico, entre o Japão, a Índia e a China. Regressou a Portugal por volta de 1557 e casou com D. Maria Correia Brito, instalando-se numa quinta do Pragal. Aí escreveu a Peregrinação , publicada postumamente em Lisboa em 1614. Devido a certa faceta hiperbólica, tornou-se conhecido como «Fernão, Mentes? Minto». PEREGRINAÇÃO CAP. I – Do que passei em minha mocidade neste reino até que me embarquei para a Índia Quando às vezes ponho diante dos olhos os muitos e grandes trabalhos e infortúnios que por mim passaram, começados no princípio da minha primeira idade e continuados pela maior parte e melhor tempo da minha vida, acho que com muita razão me posso queixar da ventura que parece que tomou por particular tenção e empresa sua perseguir-me e maltratar-me, como se isso lhe houvera de ser matéria de grande nome

Os Maias - Eça de Queirós

"O Ramalhete" (séc. XIX), Janelas Verdes, Lisboa Os Maias I A casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no outono de 1875, era conhecida na vizinhança da rua de S. Francisco de Paula, e em todo o bairro das Janelas Verdes, pela casa do Ramalhete ou simplesmente o Ramalhete. Apesar deste fresco nome de vivenda campestre, o Ramalhete, sombrio casarão de paredes severas, com um renque de estreitas varandas de ferro no primeiro andar, e por cima uma tímida fila de janelinhas abrigadas à beira do telhado, tinha o aspecto tristonho de Residência Eclesiástica que competia a uma edificação do reinado da Sr.ª D. Maria I: com uma sineta e com uma cruz no topo assemelhar-se-ia a um Colégio de Jesuítas. O nome de Ramalhete provinha, decerto, de um revestimento quadrado de azulejos fazendo painel no lugar heráldico do Escudo d'Armas, que nunca chegara a ser colocado, e representando um grande ramo de girassóis atado por uma fita onde se distinguiam letras e números de uma d

"MAR PORTUGUÊS" - Fernando Pessoa

"MAR PORTUGUÊS"  Possessio Maris  I. O Infante  Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.  Deus quis que a terra fosse toda uma,  Que o mar unisse, já não separasse.  Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,  E a orla branca foi de ilha em continente,  Clareou, correndo, até ao fim do mundo,  E viu-se a terra inteira, de repente,  Surgir, redonda, do azul profundo.  Quem te sagrou criou-te português.  Do mar e nós em ti nos deu sinal.  Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.  Senhor, falta cumprir-se Portugal!  II. Horizonte  Ó mar anterior a nós, teus medos  Tinham coral e praias e arvoredos.  Desvendadas a noite e a cerração,  As tormentas passadas e o mistério,  Abria em flor o Longe, e o Sul sidério  ’Splendia sobre as naus da iniciação.  Linha severa da longínqua costa —  Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta  Em árvores onde o Longe nada tinha;  Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:  E, no